A ausência de mundo em Euphoria

Por Sandro Kobol Fornazari*

Euphoria (Sam Levinson, HBO, 2019) é uma série de televisão para adultos sobre adolescentes, e também para adolescentes que não sejam infantilizados. No entanto, não é bem assim. Não é sobre adolescentes, mas sobre a maneira como eles se deparam com um mundo onde os adultos estão ausentes na medida em que são incapazes de sustentar parâmetros para uma vida social minimamente saudável para suas filhas e seus filhos. Nessa cidade provinciana qualquer nos EUA, não há regramento social que possa acolher os medos e os anseios de quem se prepara para a vida adulta, para tomar decisões sobre o seu futuro após a finalização do colégio. As famílias não são mais que ilusões perdidas: por causa do alcoolismo ou por mera distração (não parece fazer diferença). As mães simplesmente não estão lá, não fazem parte da vida das filhas e dos filhos. Quanto aos pais, a situação em nada melhora: um vai aos poucos abandonando as filhas até que se vê viciado em analgésicos e em heroína, outro que se interessa apenas em ensinar ao filho como ser bem sucedido no futebol para escapar assim do racismo, outros, como as mães, completamente ausentes. Produz-se desse modo uma miríade de traumas a que esses adolescentes são expostos na medida em que têm de enfrentar sozinhos inclusive as dores de suas mães e de seus pais além, claro, das experiências dolorosas da autoaceitação ou da necessidade de transicionar sua experiência com o próprio corpo sem a presença dele/as. Para não falar da escola que nada tem a acrescentar-lhes enquanto experiência existencial. Por tudo isso, essas adolescentes, predominantemente meninas, aprendem a ter de lidar sozinhas com uma soma de experiências dolorosas ligadas à sexualidade, aos problemas mentais, à adicção e à solidão.

Euphoria é soturna, tanto estética quanto tematicamente: primeiro, porque os acontecimentos estão predominantemente banhados pela noite, em festas, num parque de diversão, nas voltas para casa, nos momentos antes de dormir, mas, mesmo na escola, tudo tem um aspecto sombrio, como se a luz tornasse os ambientes artificiais, irreais; no segundo sentido, há uma melancolia que atravessa tudo, os personagens e as relações entre eles. Mesmo Jules, personagem recém chegada na cidade, que chega trazendo uma luminosidade vital ao grupo de amigas, não demora a se apagar, a ter de se refugiar nos ambientes sombrios a que sua amizade com Rue a atrai e a seduz. Rue é a protagonista que encarna em sua essência a ausência de vivacidade, o tom soturno de quem é tragado pelo abismo do inominável, ainda que se ampare no amor que sente por Jules para manter-se respirando (a incrível sequência das duas na piscina é emblemática por contraste, porque quem parece se esforçar para se asfixiar é Jules, que é amparada por Rue). Mas, ainda pior para a derrocada de Jules é ser enganada e depois obrigada a se render às tramas escusas do antagonista Nate.

Nate é um personagem odioso: o atleta, o branco, o rico, o sedutor das garotas, acossado, porém, pelo desejo homossexual que o atravessa a partir das experiências subterrâneas inconfessáveis e irreprimíveis de seu pai. Nate se revela abusivo nos relacionamentos, ególatra, violento. Ele é o antípoda de todas as meninas que, a despeito de suas angústias, compõem enquanto grupo múltiplos devires-minoritários: o enfrentamento do transtorno mental, a transicionalidade sexual, a liberalidade sexual contra o moralismo, entre outros. Contra essa normatividade violenta, ainda que hipócrita, de Nate, as garotas parecem se debater e, em alguns casos, chegam perto de se despedaçar. Porém, ao fim, a tênue potência de vida que insiste e resiste nelas permitirá que se desvencilhem assim como uma noite mal dormida é deixada para trás. Nate é efetivamente impotente diante dos devires que tentava aprisionar.

Além da estética noturna, a música praticamente onipresente é magnética, construindo um clima que vai da angústia à euforia, justamente. Predomina o hip-hop, embora muitos outros estilos estejam presentes. A música às vezes se sobrepõe à própria trama, uma espécie de narrativa assignificante, pura força, pura energia, que pulsa junto com esses corpos vacilantes, essas mentes fraturadas, essa cidade que asfixia, tendo seu ápice no último episódio, quando ela arrasta toda a trama para dentro de si.

O ar que falta é o signo maior do tempo que vivemos. Em Euphoria, o que sufoca é a impossibilidade de futuro naquele lugar, diante dessa experiência de ausência de mundo: o que se pode almejar num lugar em que os impulsos se mostram tão frequentemente autodestrutivos, mesmo quando tudo o que se espera é um mínimo de amor, de amparo, de escuta? Várias vezes, insiste a ideia de que nada daquilo importa, que tudo será esquecido em pouco tempo, quando todos finalmente se lançarem na vida adulta. Mas, tudo o que se vê mostra justamente o contrário. Como se todos ali estivessem condenados não a viver os erros de sua juventude, ou os traumas de sua infância, mas sim condenados a viver a experiência absoluta, inelutável, da ausência da vida adulta, da imaturidade como a própria subjetivação da vida no capitalismo neoliberal e, consequentemente, a experiência da repetição incessante do fracasso dos relacionamentos humanos.

Euphoria é a primeira série pós-pandemia a expressar esse mundo como ausência, sem horizontes, sem promessas de felicidade sobretudo aos mais jovens a às crianças. Tudo isso, embora tenha sido feita antes da pandemia (trata-se inclusive de uma adaptação de uma série israelense de 2012). Tudo isso, embora a pandemia ainda viceje, em 2021, em toda sua glória de amplificadora da estupidez humana.


*Colaborador externo.