Um “curta” para um curta: os dois Brasis de Paula Gaitán (sobre Se Hace Camino al Andar, 2020)

Por Lucas Carvalho Lima Teixeira

Um dos artifícios mais admiráveis dos curtas-metragens é sem dúvida alguma o seu refinado poder de síntese. Ao mesmo tempo, porém, ele é também o de mais difícil execução. Sob a exigência do modus, o curta é permanentemente exposto ao risco de se dobrar a uma mera desenvoltura telegramática, mais preocupada em passar a mensagem de fundo, sem se permitir demorar em ilações narrativas ou imagéticas relativas à figura, e estabelecer a identidade estética da obra em questão, cravando em poucos minutos um excessivo “maneirismo” de câmera, fotografia ou sonorização, do que propriamente preocupada em articular para os sentidos o jogo sintético-figurativo entre discurso, imagem e som. Assim, o equilíbrio que se esgueira entre um resultado episódico banal e uma fatal impressão de longa-metragem prematuro vem se apresentar como o fantasma, auxiliador ou executor, de qualquer um que assuma o empreendimento sintético do curta. O laço final e decisivo cabe, por último, na aura que impregna o resultado da relação espetáculo-espectador, à tarefa à qual todas as artes, mas de modo muito particular o cinema, têm de corresponder, sob pena de a obra se transformar em música ambiente, jogo de passatempo ou reserva de matéria-prima para o predatismo analítico (ou, geralmente, pseudo-analítico) dos críticos – opções que, não obstante, sem dúvida estão previstas no planejamento industrial contemporâneo: essa tarefa se traduz no êxito da efetivação do êxtase atinente ao espetáculo, isto é, a capacidade de sequestrar completamente a sensibilidade e valer-se dela com soberania implacável. Em termos mais simples: a capacidade de fazer o espectador imergir no espetáculo, esquecer-se de que se trata de um, esquecer-se de que ali há atuação, esquecer-se de si. Síntese, marca estética, êxtase: curta e grossamente, esta tríade parece agremiar alguns dos aspectos importantes que se oferecem para a demarcação da tarefa e do desafio do curta-metragem no audiovisual – desafio que Paula Gaitán acolhe como se fosse um velho e conhecido amigo e tarefa que desempenha com certa naturalidade em seu Se Hace Camino al Andar (35 minutos, 2020).

Um personagem transversal dos filmes de Gaitán, conceitual e figurativamente compreendido, caracteriza-se pela autoimposição da soberania do ambiente circundante, inabalável e indisponível em sua presença, condição para si mesma indiferente no que diz respeito ao enredo, muito mais evocativo da presença impassível e observadora dos deuses na epopeia grega do que do mero cenário de trama, ainda que se recorresse àquele cenário altivo e determinista que marcou os desdobramentos do realismo no século XIX – note-se, neste sentido, por exemplo, a presença ancestral, quase falante, da floresta em seu monumental Luz nos Trópicos (255 minutos, 2020). O personagem-ambiente perfaz aqui, em sua unicidade imediatamente imposta e inamovível, embora surpreendentemente expressiva, já metade do plano de síntese que configura Se Hace Camino al Andar: trata-se de uma imagem total, mas muito pouco “impressionista” – como avaliava a verve sociológica e particularizante de Sergio Buarque de Holanda toda vez que se deparava com diagnósticos de totalidade afins –, de um Brasil espiritual, por assim dizer, competente o suficiente para delegar-se representante de um certo espírito latino-americano, a América Latina dos caudilhos, dos latifundiários, dos grileiros, bandeirantes, conquistadores, senhores de casa-grande, dos patriarcas cristãos e chefes de milícia. Brasil antigo, quase meta-histórico a esta altura, maquiado no quadro homogêneo do filme de cena única de Gaitán pelas periferias plenamente ocupadas por estradas movimentadas, numerosos caminhões de mercadoria e automóveis de negócios e de passeio, sonho do progressismo autoritário e nacional varguista ou do desenvolvimentismo “ameno” e importado de um Kubitschek; o Brasil aqui dominante na cena de Gaitán, o histórico personagem-ambiente soberano, o Brasil que marca o contorno das estradas e do progresso, isto é, aquele que dá a forma, é o Brasil da monocultura (em seus dois sentidos), do oceano do mesmo, de um verde que parece vida mas que, dos subterrâneos escusos, pulveriza morte e esgota a terra que o sustenta, Brasil da soja rasteira, do milho abusivo, da cana embriagada, do boi incendiário, da tão aplaudida commodity, vendida para o exterior como se fosse alimento e para nós como se fosse um Caxias econômico – faz que serve ao povo, à nação, mas enche mesmo é a barriga da elite.

O outro Brasil de Gaitán, integrado nada pacificamente ao primeiro, entra em cena na carne do único personagem-gente que compõe o curta: um anônimo do qual mal podemos ter vislumbre do rosto – se quem é todos não é ninguém, poderíamos inferir que um ninguém é todos nós, não é mesmo? O tal inominado é inserido à distância, paulatinamente, bem devagar, galgando imagem desde o fundo: de início tão à distância que os contornos desaparecem, sem que possamos saber se sua participação é engendrada pelo ambiente monocultural ou se irrompe ali sabe-se lá de onde, como um alienígena. Sua trama é desesperadoramente cíclica, embora se faça contrastar com isso uma calmaria inexplicável: enredado em uma espécie de destino trágico, daqueles onde todos os desvios e atalhos conduzem precisamente ao desfecho anunciado, anônimo é mantido ora à margem, entre o asfalto e a plantação, ora nas melodias sereianas que vêm do milho e da soja, acabando por ser engolido por estes até desaparecer por completo. Quando isso acontece, Gaitán nos surpreende com uma ríspida e violenta quebra de câmera que atira o anônimo de volta para a margem da estrada, caminhando em frente novamente, como um parafuso espanado, ou lançando-se contra o maquinário agrícola que brota de repente ao lado dos velozes automóveis. Na batalha insistente entre o ambiente e o anônimo, Gaitán nos brinda com o melhor de sua “câmera discursiva”; a cena que faz o ponto alto do curta, cuja estatura é já enorme, performa a luta do anônimo para sair do meio do mar de soja, cavando o verde desértico com verdadeiras braçadas de atleta: aqui, o personagem-gente vai transpondo a plantação na medida em que é mantido sempre no centro do enquadramento por uma lente que se movimenta na sua exata velocidade, oferecendo-nos um autêntico espetáculo infernal de esforço desperdiçado, imóvel, eterno; em um espaço homogêneo, sem qualquer outro ponto de perspectiva, a impressão é de que não sai nunca do lugar. Enfim livre, à margem tanto do progresso (a nova barbárie) quanto da mais antiga barbárie (catalisada pelo “novo”), anônimo segue caminhando a todo momento e jamais cessa o passo – até novamente ser engolido pelo verde-morte.

Capturando-nos em pouco tempo numa desavisada hipnose, Paula Gaitán nos provê de uma experiência estético-simbólica sobre esses dois Brasis: o Brasil anônimo das gentes todas, onde nomear é limitar, o Brasil perseverante, esperançoso, o Brasil que segue “caminhando e cantando e seguindo a canção”, que luta e que cede, que sobre-vive, e o Brasil monocromático, monotonal (destaque para a fulminante trilha de Ava Rocha!), o Brasil ainda soberano de uma monocultura de senhores, expressões esdrúxulas de um parasitismo cultivador, “empreendedor”. A maneira como Gaitán resolve esses dois Brasis, no entanto, nos coloca um gosto acre na língua, embora sirva também, sobretudo e antes, certamente como um aviso, um choque de consciência: por fim, o personagem-gente cessa de caminhar, coloca-se em quatro patas, como “gado”, e dispara aos tropeços. Já não há mais caminhar nem canção, apenas grunhido e pó. Já que toda arte porta sempre um pouquinho de profecia, será que é este o camino que estamos haciendo?