2020 e o centenário de João Cabral de Melo Neto

Por Alexandre Squara

Como a morte aqui é tanta,

só é possível trabalhar

nessas profissões que fazem

da morte ofício ou bazar.

Morte e Vida Severina


Se 2020 tivesse sido um ano normal, um dos nomes que mais teríamos ouvido falar é o de João Cabral de Melo Neto cujo centenário teria se celebrado. É certo que a pandemia não corrompeu a matemática nem o avanço do tempo, o poeta pernambucano encontrou o centésimo ano a partir do nascimento, mas – como tudo que não é vírus, doença e morte foi ofuscado em 2020 – o centenário de seu nascimento foi aludido discretamente em folhetos especializados, postado em histórias obscuras de seus seguidores anônimos e publicado numa suntuosa obra completa, cujos preços não têm graça. Cabral fez cem anos no pior ano da história recente do mundo, e este fato, de alguma forma, pode ser a grande homenagem que o espírito do tempo prestará ao poeta.

Se a morte é, como diz Schopenhauer, a musa da filosofia, podemos sugerir que os poetas também buscam, a seu modo, acercarem-se dela e fazerem-lhe um tipo de corte evasiva, malandra, gaia, o flerte da poesia com a morte tornou-se peça de brasilidade ao longo dos tempos, pois, desde então, não foi mais necessário descer aos infernos para vislumbrar o além-vida, aqui se sente o seu bafio na extensão solar do semiárido, às bordas do Capibaribe, nos cortejos fúnebres arrastados do Brasil profundo. Se a filosofia tem a morte como musa, a poesia a tem como donzela, dessas de ares virginais que se apresentam frágeis, mas escondem a força e a potência que no mundo maior não há.

O projeto poético de João Cabral de Melo Neto é um dos mais bem sucedidos da história literária brasileira. Seu itinerário embaralha algo de imersão e ascendência, pois que o real concreto tem as vísceras penetradas e expostas pela letra cabralina, que entranha a matéria com agudeza de morte, numa secura tal que o leitor ingênuo poderá supor que não há na poesia de Cabral uma violenta imersão na busca pelo sentido de tudo: as coisas claras com as quais sonha o engenheiro são formas particulares, mas que contêm implicadas irremediavelmente em si o bojo do universal, a ascensão está no plano da técnica, impecável, geométrica, numa escalada de rigor que engendra a forma na dureza da matéria. A pedra de Cabral comporta a planta-baixa de seu ímpeto que no plano da sintaxe nunca cessou de arrojar-se.

Em 2020, 1,8 milhões de pessoas morreram de Covid-19 no mundo. 194 mil no Brasil. E não apenas o afogamento das milhões de vidas no seco desenha o horror, mas à espreita do óbito, a necrofilia política, a excitação diante do sofrimento, a morte que sonda. 2020 foi o ano daquela morte metafísica de Tales, como secura, o não-úmido, a aridez generalizada e é nesse contexto que a homenagem à Cabral partiu, dramaticamente, do próprio ano, sua atmosfera cadavérica içou como honraria tétrica a grandiosa festa da morte, diferente das Duas das Festas da Morte em Museu de Tudo, em que é cerimônia, e a morte é tomada como rito de passagem, mesmo numa situação dramática como a que aparece no poema, a morte de crianças, ainda sujeitas à encomendação, ornadas de óleos e cantigas, exéquias, altares de flores. Enquanto 2020 nem mesmo o ritual da passagem pôde se preservar, restaram as espraiadas covas coletivas, anchas, grandes para carnes poucas, os enterros noturnos, 400 mil severinos vitimados.

Mas tomemos cuidado para não reduzir levianamente o projeto cabralino a uma poética da morte, não é isso. Em primeiro lugar porque Cabral não estava interessado em imagens etéreas, mesmo em sua estreia editorial A Pedra do Sono, texto de cepa expressamente surrealista, os desenhos não são autômatos indeterminados, meros caprichos de uma fantasia esfogueteada, como diz Carlito Azevedo no prefácio à Escola das Facas, trata-se de um surrealismo estruturado, já transpassado pela solidez das pedras e o equilíbrio trigonométrico. E a partir daí seu projeto ganha corpo, o monumental O Engenheiro, os sonhos já são claros, são retas, superfícies, uma densa geometria se afixa como planta-baixa de um edifício monumental. A morte se projeta, mas não numa exibição vulgar, se encrusta nas coisas, em Psicologia da Composição, texto decisivo no itinerário poético cabralino, a Fábula de Anfion prenuncia um mundo de horror e maravilha em que a poesia existe já sempre implicada na matéria, onde caem os abstratos, a morte abstrata cai e se encarna nos dias e nas coisas.

Quando Cabral publica O Engenheiro, a humanidade, ainda atordoada, começava a assimilar os traços de um dos maiores morticínios da história, era 1945, o sangue dos mortos de ontem gotejava, a humanidade tateava entre corpos e escombros. A ideia de uma poesia solar pode soar como algo alvissareiro e pretensamente paradisíaco, mas não, o sol de Cabral é aquele que queima a pele, que incide nos agrestes e endurece os rostos dos sertanejos. Num dos mais extraordinários e significativos textos desse livro, o poema As Estações, lê-se: “os homens podem sonhar seus jardins/ de matéria fantasma” é o início de uma reestruturação das colunas do poético, a matéria até então era fantasma, assombração, até que se estabelece “a terra não sonha/ floresce: na matéria/ doce ao corpo/ flor/ sonho fora do sono/ e fora da noite/ como os gestos em que floresces/ teu riso irregular/ o sol na tua pele” Está consumada a conversão, Cabral inverte os termos e a flor desabrocha na matéria, uma vez que os jardins espectrais jazem mudos nos reinos do abstrato e a irregularidade do riso, aqui se pode dizer, carnal, na transposição brutal do sono para a vigília, da noite enevoada para o dia árido, a pele chamuscada de sol. Ecce Homo, o sol e a pedra, as substâncias.

2020, tal como a obra de Cabral, foi um feixe de tensões. Muita aflição, sem espaço para o sonho (a terra não sonha) é bem verdade que o isolamento produziu músicas, poemas, cartas, alguma alfaiataria de ideias salpicadas nas periferias do mundo, mas nós, legatários ainda vivos desse ano emblemático, experienciamos a materialização do medo, a morte deixou de ser a sombra, passou a ser o metrônomo da UTI, a sala de espera, o caixão, o vazio, a secura novamente, a perplexidade. O horror expresso em rede nacional, quando o vírus que mata sem ar fora referido sob a alcunha de “gripezinha” – o horror da excitação diante da dor dos outros, porque a morte que se ergueu como resultado de um processo e se tornou concreta não apenas tingiu de luto a continuidade de nosso solo, mas também fez concreto o gosto sádico e estranho por ela, a morte, não um gosto daquele que se lança no abismo de tentar compreendê-la pela mística ou seduzi-la pela letra, mas uma erótica sádica que bebe o sangue dos inocentes e sorri. 2020 não foi obscuro nem sombrio, foi solar e sufocante, a luz incidiu no excesso de um deserto e revelou o que há de pior na raça humana. Revelou que o pior da raça humana se elevou, o triunfo da morte veio na forma de escatologia, fezes, podridão.

O poeta quando velho não gostava de falar sobre Morte e Vida Severina, afora se fosse tratado como um texto normal de sua obra. E convenciona-se dizer que este auto magistral fecha a chamada tríptica do Capibaribe. Vamos deixar de lado o virtuosismo técnico do Cão sem Plumas e O Rio, textos altamente elaborados do ponto de vista sintático, e pensemos em como a morte parece assumir uma forma de movimento. É controverso, mas se for possível extrair alguma rítmica da lavra cabralina esta teria de ser capturada a partir do movimento dos rios, e na procissão fúnebre da primeira parte de Morte e Vida Severina o luto e o sacolejar do andor à cata do rio se interpenetram naturalmente na peregrinação do retirante, nos cantos de excelência a que se oferece ao defunto, na certeza de um caminho incontornável e sem volta. E tudo se mistura na dialética das espessuras, morte, movimento, rio, secura e pedra. 2020, Cabral faria cem anos.

O retirante, que em Morte e Vida Severina margeia o rio e avança na dialética morte-vida, retorna à sua figuração cem anos depois, mas os agrestes insurgem agora na forma de calendário, a peregrinação é o ano de 2020. Em março, o retirante explica ao leitor quem é e aonde vai, mas ninguém entende muito bem, a incerteza e o assombro do desconhecimento são onipresentes, a peregrinação não espera, o tempo não cessa, o vírus avança e os óbitos ganham corpo nos gráficos. O retirante avança e alcança junho, encontra novamente a procissão que leva os corpos, e “de onde partiu esse ave-vírus, irmão das almas?” É difícil dizer, mas o cheiro de morte vem dos Planaltos, o retirante perplexo vai aprendendo a naturalizar as mortes, e segue. “Queria mais espalhar-se, irmão das almas/ queria voar mais livre”, chega em agosto, e tem medo de se extraviar porque já se encontra completamente sem guia, o rio secou, o calendário se desbotou ante o horror, estão cantando excelências a um defunto, já quase em setembro, os ofícios de morte se espalham, o retirante pensa em interromper sua viagem já exausto e atordoado, mas segue. Reescrevendo o final, o retirante de 2020 não chega à Recife, é dezembro, mas o ano não acabou, o itinerário do retirante segue e não sabemos mais por onde ele anda agora. Por quais solos endurecidos caminha, o que o aguarda neste eterno retorno de datas e mortes concentradas. Aguardamos a outra face do Auto.

Em O Cão sem Plumas, uma das mais brilhantes composições da língua portuguesa, somos introduzidos a esta densa lógica das espessuras, donde justaposições de corpos são operadas conforme suas compleições naturais, e dessa quase dança estacionária dos planos Cabral evoca sua pedagogia da pedra. Estendamos esta analogia, agora egressos de 2020, mas ainda não fora dele, a pedra da morte nos ensinou alguma coisa? Onde se inscreveu sua Educação pela Pedra? Evoquemos a muito conhecida passagem desse mesmo livro: “um galo sozinho não tece uma manhã” porque na dialética dos espessos cada composição de matéria terá sua sobressalência e podemos esperar talvez a segunda parte de Morte e Vida Severina a partir do encadeamento das manhãs, mesmo as que ainda têm o cheiro dos mortos de ontem podem guardar alguma redenção, porque até Cabral sorriu quando assistiu a teatralização de seu texto mais famoso, com música de Chico Buarque, no teatro Tuca em 1965. 2020 evocou João Cabral da pior forma possível, empilhou traumas e corpos, esperemos outras materializações quem sabe mais arejadas, quem sabe ressignificando o sol e a luz que brilham forte em toda a lavra cabralina. Aguardemos.