A cidade de Manoel: um pouco de nada em verso
Por Alexandre Squara
É muito específica a relação entre sujeito e objeto quando o sujeito é o leitor e o objeto é o poema. Para percorrer um poeta é necessário tempo, paciência para aclarar o contato. Ir se avançando pelos caminhos, ir percebendo as velocidades, as apropriações particulares do tempo, da palavra e do som. Uma obra poética é como uma cidade, algumas são acolhedoras, com largas avenidas, alamedas, praças amplas e monumentos; outras são exíguas nas vias, de solos irregulares, cidades de mineração, que margeiam rios, industriais, bucólicas, etílicas. A demografia do verso é fértil.
A cidade de Manoel de Barros, ao contrário do que as primeiras impressões podem indicar, é futurista. O poeta mato-grossense forjou em sua obra desenhos de vertigem, que se disfarçam de poucas linhas para revelar – à medida que se adentra seu espaço – a complexidade característica de quem se lança em busca do Nada. Mas, por enquanto, iremos apenas à um bairro desta cidade, O Livro sobre Nada, de 1996, é uma das mais densas incursões nos vacilantes solos do Nada.
Em seu Pretexto, Manoel afirma que esse Nada que foi acercado no livro não é o Nada dos filósofos (embora seja precisamente este, desconfio), antes o poeta se alia a Flaubert e revela a tentativa de fazer um livro sem tema, que não se prestasse a estudo. E o projeto de Manoel de Barros espalha sua ambição já nestas primeiras linhas, o que se pretende no texto é desutilizar as palavras: desmontar, descontruir, desfazer, são verbos que se inscreverão na antinomia da linguagem, de forma que o Ser que se desoculta pelo poema é também, em Barros, a imagem abstrata da consciência-objeto que nasceu já órfã de causa final.
A narrativa meio disforme que aparece na Arte de Infantilizar Formigas é a base do método, Manoel, como Deus, prefere as linhas tortas. A estética da desutilidade encorpa a caracterização do Nada como demolição do empírico. O tempo já é vencido e não responde a qualquer reivindicação de linearidade: “o menino de ontem me plange” (p.331)[1] e cada personagem desse portal introdutório carrega a missão de descontinuar a divisão entre homem e coisa. Na cidade de Manoel, antiparmenidiana de essência, não há conflito em ser homem ou ser formiga, ser matéria, ser pensamento, ser verbo ou ser inseto. O Nada totalizado espelha o múltiplo das coisas.
Já estabelecido o plano do desapetite e na inutilização programática de tudo, é hora do meretrício: Desejar Ser compreende a mobilidade urbana da Cidade-Nada de Manoel. Nesta segunda parte as estrofes ganham disposições ligeiramente mais rijas, o ritmo do texto já pressupõe o leitor imerso: “não serei mais um pobre diabo que sofre de nobrezas/ só as coisas rasteiras me celestam” (p.338) o céu está no solo, e não haverá quem possa divisar a alegria do esgoto, porque aqui o exercício é de se fazer contínuo, pois de tanta continuidade acha-se o Nada, como na conciliação do infinito que Leibniz foi legitimar pelo cálculo e que Cusa pressupunha alguns séculos antes, embebido ainda de transcendência. A revelação que Manoel de Barros opera do Ser é para dentro, as vísceras do mundo são substantivos distorcidos na forma de verbo, reduções agudas no enleio dos significantes, em última instância, a imagem, redimensionada como desapego, como leveza, a praça central da Cidade do Nada é a imaginação inútil, imaginário surdo do reino das palavras.
Conduzido o tempo todo em primeira pessoa, para que se saiba que o poeta é pessoa e não abre mão de o ser, o poema segue rumo ao núcleo silencioso de seu objeto, o eu-poético afixa na sétima estrofe o que se poderia classificar como o regimento interno da Cidade-Nada: “Sei que fazer o inconexo me aclara as loucuras/ Sou formado em desencontros/ A sensatez me absurda/ Os delírios verbais me terapeutam” (p.339). Manoel prescinde dos logicismos, as loucuras são vigentes e reclamam clareza para sua motricidade, não há geometrias, as vias aqui são tronchas e não se deixam mapear. Manoel gosta de misturar delírio e matéria e há quem se sinta em casa no Livro sobre Nada.
Nas esquinas, encontram-se perpetuamente a beleza e a dor. Nos bares da Cidade-Nada, Baudelaire, alucinado de ópio, mas sereno, observa o congraçamento das antíteses. As administrações públicas, em suas repartições oscilantes, aparecem numa técnica precisa a parir da oitava estrofe, Manoel vai manobrando a tensão erótica fundo-forma, e o “à toa, o em vão e o inútil” (p.340) brincam de operar a síntese entre o conteúdo de nadificação primaveril e a forma othakiana de versos em vigas suspensas e figurações sintáticas ostensivas e inesperadas. O poema segue em suas terminações nervosas que Manoel chamará de sabedoria mineral, a transformação do pensamento visível em coisa-bruta-pura está em curso.
“A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá/ mas não pode medir seus encantos” (p.340). Mensuração é verbete estranho para Manoel. Ciência é adivinhação em cores, não sabemos se Hume já tateou aquelas terras, mas há uma praça com o nome dele, porque a crença da causa não aparece no plano diretor, a estética dos absurdos só é dada a coisas pequenas, os tratados gerais – tipicamente manoelizados – são das grandezas do ínfimo, como aparece noutro bairro. Mas a clivagem que o poeta intenta com tanta violência discreta é a horizontalização do real, uma só dimensão de desimportâncias e títulos, de modo que “Também as latrinas desprezadas que servem para ter grilos dentro – elas podem um dia milagrar violetas” (p.342). E assim, dentre latrinas e violetas, alcançamos a religião oficial da Cidade-Nada de Manoel, a religião do abandono, e tudo que ligares na terra... e tudo que abandonares na terra seria mais próprio, pois quem habita a Cidade do Nada, quem mora neste livro é protegido, a noite, pelo abandono.
Aos moradores, é muito natural caminhar desbragado pelos imensos calçadões na terceira parte do livro, aí sim, O Livro sobre Nada, na majestade de sua insignificância, apresenta-se orgulhosamente na forma aforismática do ilógico. “Melhor nomear do que aludir/ o verso não precisa dar noção” (p.346) e Manoel de Barros estreita o projeto e comprime com delicadeza aquela descontinuidade metafísica e lança-a no formato de pequenos fotogramas, clarões instantâneos que alcançam a síntese – diríamos, graciosamente imperfeita – entre parte e todo. O poema ganha ares metalinguísticos, problematiza a si mesmo, a cidade se duplica numa prospecção inexata, não há limites, a palavra seduz abrindo o roupão e desejando ser feita ou per-feita conforme se entremesclam os traços, a transvisão das semânticas brincantes se exibem e o verso, pleno, robusto, vaidoso de si e se sabendo grande só é sério por ser brinquedo.
Manoel quer que seu Nada seja visto. Na última parte do livro, naturalmente destoante, de lavra perplexa flertando abertamente com a pintura, o poeta começa a rearranjar as saídas, as placas de sinalização da Cidade-Nada são pintadas por Picasso, Quiroga, Klee. Corre novamente a reta para conciliar o círculo, porque o deslumbre aqui ascende mais um grau, é o Eu que se desfaz no outro, imiscuem-se certezas de pensamento e matéria, todas as alteridades compiladas são caminhos para o Nada. Manoel manifesta também sua psicologia da genialidade, mais uma vez inversão: “Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro. / A arte não tem pensa / O olho vê, a lembrança revê / e a imaginação transvê” (p.350). O gênio manoelista não trata de traduzir formas perfeitas, ele as subverte, as deforma, trans-figura suas geometrias fundantes e reergue a dinâmica da visada. Romulo Quiroga, pintor boliviano, é o engenheiro aqui, e para falar de engenharia, a expressão reta não sonha.
No cemitério da Cidade-Nada, logo à entrada, vê-se a tumba de Antônio Ninguém. A morte aqui é também desacontecimento e transferência de forças. Manoel é delicado, vê a vegetação crescendo por sobre os ombros daquele que não serve mais para pessoa, novamente o tempo, desenrolado como um tapete: “Meu olhar tem odor de extinção” (p.351) e a Cidade é projetada para fluxos, alternância entre pássaros e homens, retorno inegociável àquele Nada flaubertiano, no fundo a busca de Manoel é também contemplação, pois ele sabe bem que esperar pelo Nada é também buscá-lo, revelá-lo, até com certa obscenidade e fazer da espera um laboratório dos imaginários inexistentes, o habitante médio desse espaço é Ele mesmo: o Andarilho, sem nome (de desnome Andaleço) errático, que compreende o infinito apenas por se compor a si mesmo em largas ondas de aromas e cores, não há mais definição para a imagem, o Andarilho encerra as divisas que a teoria do conhecimento não pôde nunca abarcar.
[1] Para este ensaio, adotamos a edição BARROS, Manoel. Poesia Completa. Editora Leya. São Paulo. 2010. Indicaremos no corpo do texto apenas a paginação.