A reinvenção do homem pela experiência do poético
Por Sergio Assunção*
Diante da barbárie e do materialismo decorrentes da lógica industrial no ocidente civilizado do século XIX e XX, a lírica moderna possibilitou ao sujeito voltar-se sobre a própria obscuridade e esvaziamento psíquico e existencial, por meio de uma experiência pela qual se inscreveu um saber de indefectível verdade acerca da condição humana. Evidentemente, o gesto de trazer a poesia para o nível do corpo e do outro na esfera cotidiana, demovendo-a de sua representação estética para rearticulá-la ao nível orgânico, urbano, negativo e vivencial, teve significativa ressonância na poesia do século XX.
No Brasil, alguns poetas como Jorge de Lima, Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade, impactados pelas grandes guerras que aviltavam a humanidade, assumiram a poesia como uma ética e um instrumento de intervenção crítica, revelando a degradação humana resultante da indigência e do barbarismo entronizados nos monumentos da cultura, como afirmara categoricamente Walter Benjamin (1994, p. 225), para quem “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie”.
A poesia de Drummond nos exorta a recriar o presente por meio da experiência do poético, absorvendo-a como uma experiência de desembrutecimento em meio aos efeitos de reificação do mundo civilizado, seja ao nível do corpo, da alteridade e da negatividade de um sujeito em crise.
Para Murilo Marcondes de Moura, o primeiro momento da produção poética de Drummond consiste em seus dois primeiros livros, Alguma poesia (1930) e Brejo das almas (1934). Após essa fase inicial, segundo Murilo, Drummond expôs um novo momento de transformação a partir das obras Sentimento de mundo, seu terceiro livro, de 1940, José, de 1942, e A rosa do povo, de 1945, mergulhando sua poesia na profundidade do homem, suas crises e contradições.
Segundo Moura, nesse interregno, a lírica de Drummond operou uma ‘mudança de perspectiva’ em torno do caráter dramático da experiência humana, ao explorar a negatividade do sujeito e seu sentimento de desconcerto no mundo, trazendo à tona os desejos e medos, a solidão, a timidez e a busca pelo outro, além da consciência da incomunicabilidade expressional.
“Se a abertura para ‘o mundo grande’ foi capaz de engendrar a necessidade de escrever, o próprio ato de escrever impregnou-se de uma vocação transitiva em sentido abrangente. Não se pretende aqui postular a ‘comunicabilidade’ da poesia de Drummond, que é essencialmente difícil, mas de mostrar como o desejo de expandir-se em direção aos outros homens e ao mundo é um de seus impulsos fundamentais”. (MOURA, 2012, p. 23.)
Se de um lado havia a massificação ideológica resultante do capital industrial que reduzia a cultura em bem de consumo, do outro havia a falsificação dos valores sociais e direitos humanos pelo fascismo dos regimes totalitaristas. Assim, o barbarismo da modernidade industrial chegou ao seu ponto mais degradante com as Guerras Mundiais provocadas pelo arianismo nazista que levou milhares de judeus, ciganos e opositores políticos ao holocausto dos campos de concentração, até culminar na explosão atômica que devastou as cidades de Hiroshima e Nagasaki na primeira metade do Século XX.
Em meio a esse cenário, a lírica drummondiana incorporou a experiência urbana sob a perspectiva da crise de um sujeito condenado ao desaparecimento social, dando voz à sua inquietude e invisibilidade, amalgamando a fugacidade do cotidiano à transcendência de um ideal vazio.
Na medida em que a linguagem da poesia moderna se permitiu intervir sobre o real, revelou-nos, ao mesmo tempo, o quão frágil pode ser essa mesma realidade, se concebida sob o filtro da razão e da moralidade subjacentes à lógica positiva do materialismo industrial.
Mais que um domínio crítico, a poesia de Drummond abria-se à experiência de produzir um saber e uma verdade sob a inscrição de um acontecimento originado pelo mal estar do sujeito diante do mundo civilizado. Afinal, o que se desejava era colocar em evidência a substância humana obscurecida pelo embrutecimento relacional, de modo que se tornou imprescindível manifestar o desejo e a inquietude do sujeito relegado à própria reificação social, através da poesia.
Em “A noite dissolve os homens”, a voz do poeta moderno ecoa seu desencanto paradoxal entre a cegueira e a própria invisibilidade, considerando-se condenado pela escatologia de seu tempo e de sua sociedade, presenciando a deterioração do princípio da vida em comum. Deste modo, o poeta assume seu desterro social ao compreender que a solidão do sujeito foi ocasionada pelo arruinamento do sentido de comunidade na metrópole moderna.
“A noite desceu. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tão pouco os rumores que outrora me perturbavam.
A noite desceu. Nas casas, nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos, a noite espalhou o medo e a total incompreensão.”
A escuridão da noite recai sobre o poeta e a cidade, dissolvendo as formas, os homens e a compreensão da realidade. Indistintamente, a noite adensa-se na cegueira da ignorância e da insensibilidade. Como se o amor e a esperança sucumbissem ao medo da morte, seja nas casas, nas ruas, sob a atmosfera irrespirável da treva, onde o corpo suspira ofegante e a consciência padece em sua solidão. A noite é a dormência e o torpor, a apatia e a indiferença que paralisam a guerra e os guerreiros. A noite é a própria desumanização naturalizada que se alastra sob o signo da barbárie legitimada.
A noite a qual o poeta se refere transfigura-se no rebaixamento da condição humana em sua precariedade mais miserável e desumana. A noite, promovida pelo materialismo econômico e beligerante, pela ganância e pelo consumo, alastra-se para além dos homens, minando o sentido de comunidade das cidades, atingindo os heróis e as nações do mundo, irremediavelmente. A noite é o obscurantismo fascista que asfixia a vida, adentrando-nos silenciosamente pelos poros do corpo docilizado e pelo vazio da alma.
“A noite caiu. Tremenda,
sem esperança... Os suspiros
acusam a presença negraque paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho
na noite... A noite é mortal,
completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias,
apagou os almirantes
cintilantes! nas suas fardas.
A noite anoiteceu tudo...
O mundo não tem remédio...
Os suicidas tinham razão.”
No entanto, a tonalidade do poema se transforma, no momento em que o poeta proclama a ruptura com a noite e com sua mortal letargia, transfigurando-a, transcendendo-a tragicamente da dor e calamidade ‘das raivas, queixas e humilhações’, ao vislumbre pela elevação luminosa da aurora, isto é, pela utopia de um novo dia que se aproxima.
Sob o advento da aurora, o poeta profere e partilha com os homens a luz e os bens que ela é capaz de proporcionar. Ao desejar romper a escuridão que neutraliza a consciência e esmaece os sentidos, o poeta reconhece a fragilidade daquela natureza nascente, embrionária, em sua imaterialidade talvez inocente demais para sobrepujar a densidade espessa e brutalista da noite. A aurora se transfunde na poesia que resplandece sobre a treva do fascismo, derramando-se sobre os homens e prevalecendo sobre a barbárie.
Paradoxalmente, o poeta sabe que essa luz benigna e potencialmente restauradora está intrinsecamente ligada à precedência obscura da noite. Assim, por meio do acirramento entre a luz e a escuridão o poema se realiza, elevando-se a partir dessa tensão imagética que suscita a dramaticidade arquetípica entre estados opostos que coexistem no homem.
O poeta profetiza a aurora como o novo ideal de restauração que reumanizará os homens, desembrutecendo-os. Sua palavra anuncia a revelação que emana a promessa da vida. Sua voz materializa-se em sua capacidade de intervir e recriar o real, reanimando os homens do cansaço e da desilusão, estremecendo o corpo exaurido, despertando os sobreviventes da noite, até que seus ânimos se reascendam e então novamente se abracem, movidos pela esperança e comunhão.
Sutilmente o albor ilumina o espaço, até que a manhã vai lentamente decantando a névoa com seu doce rubor, expandindo no céu cor de sangue a tessitura dos raios que devolvem à vida sua cor. A aurora é quase um milagre.
“Aurora, entretanto eu te diviso,
ainda tímida, inexperiente das luzes que vais ascender
e dos bens que repartirás com todos os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.”
A dramaticidade explícita no acirramento entre as imagens da noite e da aurora proporciona ao poema uma plasticidade estrutural, além de acentuar a carga expressional que tonaliza a profundidade humana. Ao mesmo tempo que a noite e a aurora se expandem sob dimensões metafísicas, elas se confrontam tal como duas espessuras orgânicas. Seja no suspiro esvaído ou na frieza dos dedos, seja no tremor da carne ou no suor suave, ambas recaem sobre o poeta e os homens, até que o abismo se dissolva no espaço com o raiar da antemanhã. Se em outros momentos na poesia de Drummond a solidão do poeta circunscreveu-se entre a cidade e o quarto, contrastando o indivíduo com os milhões de habitantes da cidade, para logo em seguida ser transbordada pela interioridade angustiada, aqui é como se o poeta fosse lançado ao abismo, carregando toda a angústia humana, ao expressar o sentimento melancólico da solidão em meio aos mortos, como se fosse inútil proclamar tal sentimento do mundo.
Por outro lado, ao mesmo tempo em que o poeta expõe seu sentimento de desconcerto com o mundo através de sua incomunicabilidade, tal impossibilidade de exprimir-se talvez permita ao leitor aconchegar-se no intimismo latente e intrínseco a ambos, quando a palavra não é mais capaz de dizer ou reter o sentido, mas sim de sugeri-lo, seja evadindo-o ou desejando-o, já que só se pode desejar algo naquilo que lhe falta.
Ao expressar a solidão e a perversidade materialista da cidade grande, o poeta compartilha o sentimento de permanente estrangeiridade do sujeito moderno. Afinal, a solidão, o desencanto, a inquietude, a angústia e o dilaceramento são marcas que compõem a subjetividade moderna do século XX.
Davi Arrigucci Jr. (2002), ao analisar a poética de Drummond, assinala que tanto a consciência que envolve sua arte quanto o tom inflexivo de sua autocrítica são algumas das marcas principais de sua poesia. Além destas, Davi ressalta a capacidade de Drummond absorver e articular a complexidade humana em seu mal estar diante do mundo, e a incapacidade de comunicar tal perplexidade, levando à linguagem ao seu limite, expressando um mal estar da própria expressão e sua insuficiência, ao perceber-se impotente em comunicar seu sentimento de poeta no mundo.
“Dar forma às coisas desencontradas que pululam no mundo e nunca deixam de pulsar junto com o coração batendo também em descompasso, perseguir o ressôo dos ecos de fora até os mais distantes fundos da alma, eis um desafio que desde o começo o poeta parece sentir, pois de fato já nasce com o mal-estar, o sentimento negativo da inadequação e da discórdia frente ao mundo dos tempos modernos”. (ARRIGUCCI Jr., 2002, p. 32).
Segundo Davi, seja pela articulação das contradições que afligem o sujeito e o sentimento de inadequação no mundo, a lírica de Drummond expõe a dramática expressão da intimidade humana em seu mal-estar permanente. Pois ao mesmo tempo em que o poeta desmascara a hipocrisia e a indiferença da mentalidade burguesa, sua poesia fala-nos mais de perto, expondo-nos aos nossos dramas e tensões.
Para ele, a dramaticidade da poesia de Drummond expõe não apenas a perspectiva contraditória de um sujeito ao absorver com profundidade a experiência histórica. Mais ainda, sua poesia expõe a contradição de um projeto social econômico que nos impulsiona ao individualismo cego, ainda que sob a promessa de uma vida civil marcada pelo signo da liberdade. Sua poesia expõe a ilusão e angústia como duas faces da mesma moeda dessa sociedade civil, uma vez que o poeta se angustia diante da promessa de que o convívio e a sociabilidade entre os indivíduos no espaço urbano devam ser assegurados, possibilitando aos mesmos tornarem-se cidadãos de uma mesma comunidade. Ao final, ele se dá conta de que o acirramento entre as ideias de individualidade e comunidade tornou-as incompatíveis.
Por um lado, se a voz silenciosa e confessional do poeta manifesta invariavelmente o desejo de convívio, de intimidade, enfim, de compartilhamento fraterno e afetivo com o próximo, por outro lado, a mesma voz parece soar sob um grito capaz de revelar o esfacelamento e a deterioração das relações humanas produzidos pela metrópole. Logo, é justamente essa distância e vazio entre elas que o corrói, agonicamente, ao expor a esterilidade de uma solidão exacerbada pelo sentimento de impotência da palavra que, mesmo diante da desilusão em face do real, se lança no espaço da poesia, movida pelo sonho, pelo desejo e pela esperança.
“Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes
se enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez, uma inocência, um perdão
simples e macio...”
Em face da condição privilegiadamente crítica da poesia moderna, em Drummond, o sujeito tornou-se capaz de reconhecer o seu meio urbano e o seu papel social, ampliando o imaginário sobre si mesmo e sua relação com o outro, o que proporcionou a ele produzir, através do espaço literário, uma nova consciência acerca de sua vida social e histórica, ainda que sedimentada pela desconfiança acerca dessa mesma consciência.
Ao consolidar-se como produtora de uma memória e um saber, a experiência poética permite não somente a ressignificação da identidade e da memória das cidades, mas, sobretudo, a criação de um substrato cultural que possa resistir ao processo de desumanização e massificação da subjetividade e do imaginário na modernidade.
Diante desse fato, talvez seja pertinente especular que os sentimentos de inquietude e de solidão na lírica drummondiana se destacam como elementos propulsores de uma poética forjada pela tensão. Essa tensão opera como uma espécie de força motriz que perpassa os mais variados temas de sua lírica, voltada em grande parte para a realidade dramática de um sujeito que se retorce sobre si ao expressar sua inóspita condição no mundo.
Como ressalta Antonio Candido (2004, p. 72), “Na obra de Drummond, essa torção é um tema, menos no sentido tradicional de assunto, do que no sentido específico da moderna psicologia literária: um núcleo emocional a cuja volta se organiza a experiência poética.”
Segundo Candido (2004), há uma inquietude e desconcerto do poeta diante do mundo que reforçam a falência das instituições que compõem a organização social na qual o indivíduo está inserido e, de certa forma, cativo. É como se o sujeito habitante das grandes cidades fosse de certa forma condicionado à individualidade e ao egoísmo, e estivesse, por sua vez, fadado ao estrangulamento silenciador do medo e da solidão.
Para ele, a inquietude pode ser apontada como a essência da lírica de Drummond, caracterizando esse estado de espírito de um eu retorcido sobre si mesmo em busca do outro, reconhecendo-se no mundo somente através de uma experiência fragmentária, vendo-o sob uma perspectiva enviesada, de modo que esta torção se torna um tema recorrente de sua poesia, a partir de sua consciência social expressa nos livros que sucedem sua primeira fase, corroborando Murilo Marcondes Moura.
“No livro Sentimento de mundo, a mão, que simboliza a consciência, aparece de início como algo que se completa, se estende para o semelhante e deseja redimi-lo. Como o poeta traz o outro no próprio ser carregado de tradições mortas, a redenção do outro seria como a redenção dele próprio, justificado por essa adesão a algo exterior que ultrapassa a sua humanidade limitada. A poesia consistiria em trazer em si os problemas do mundo, manifestando-os numa espécie de ação pelo testemunho, ou do testemunho como forma de ação através da poesia, que compensa momentaneamente as fixações individuais do ‘eu todo retorcido’”. (CANDIDO, 2004, p. 81-82.)
Candido (2004) amplia a ideia de um “eu torto” como se este signo representasse uma espécie de subjetividade de todos, revelando o homem cativo e privado de humanizar-se em um “mundo caduco”. O sentimento de impotência da linguagem soma-se à insuficiência do eu, levando o poeta a desejar completar-se pela adesão ao próximo, transcendendo sua pessoalidade até incorporar-se pela impessoalidade de todos.
Em “A noite dissolve os homens”, a experiência do poético opera o descentramento e o deslocamento da perspectiva do sujeito, retirando-o do lugar comum e, ao mesmo tempo, possibilitando-o a esse mesmo sujeito reinventar-se sob outros meios de expressão. Isto é, a experiência do poético leva-o a ressignificar o sentido de sua própria existência em meio à realidade corrosiva. Sob a clave da negatividade e sob o compasso da dissonância social, a lírica drummondiana revela-nos a condição dissidente e solitária do poeta em face do mundo inabitável e “caduco”.
Em contraposição, há outro elemento que se destaca na poesia de Drummond: o desejo de fraternidade. Diante do esvaziamento existencial e afetivo ocasionado pela vida nas grandes cidades, onde a multidão implica em uma ausência de afeto e o mundo revela-se insólito e absurdo, o poeta comove-se com a solidão do seu próximo, estendendo a ele suas mãos.
Para Octavio Paz (2013, p. 49), a poesia reside na profundidade humana, de modo que a solidão, o confronto e o desterro do poeta com relação ao mundo estabelecem sua comunhão com o leitor, pois “se o poeta abandona seu desterro [...], abandona também a poesia e a possibilidade de que esse exílio se transforme em comunhão”. Com efeito, além da condição de estrangeiridade social, o poeta moderno tampouco comunga dos valores da civilização, vislumbrando em sua rebelião uma mudança social e no próprio homem.
“A experiência poética não é outra coisa senão revelação da condição humana, isto é, do permanente transcender-se em que consiste justamente a sua liberdade essencial. Se a liberdade é movimento do ser, transcender-se contínuo do homem, esse movimento sempre deverá estar referido a algo. [...] Se a comunhão poética se realiza de verdade, quero dizer, se o poema conserva intactos o seu poder de revelação e se o leitor penetra de fato em seu ambiente elétrico, produz-se uma re-criação. Como toda re-criação, o poema do leitor não é uma réplica exata do poema escrito pelo poeta. Mas, se não é idêntico em relação a isto ou aquilo, ele o é quanto ao ato da criação: o leitor recria o instante e cria a si mesmo”. (PAZ, 2013, p. 197-8.)
Segundo Paz, o núcleo da poesia moderna é a revelação da nossa condição e tentativa de reconciliação com nosso dilaceramento, por meio de uma experiência e não explicação. Para ele, é através da imagem que o dizer do poeta materializa a comunhão poética, quando a imagem se funde ao homem, que por sua vez se transmuta também em imagem, reconciliando-se no outro, pelo seu dilaceramento. Nesse movimento, a poesia moderna funde a ação e a contemplação, consolidando sua beleza na dimensão humana, ressaltando a capacidade de o poeta aproximar-se intimamente do leitor, tocando-lhe a sensibilidade, irmanados pelo afeto e pela dor. Enfim, a imagem transcende a linguagem, e o poema transcende a história.
Em “A noite dissolve os homens”, muito embora haja um cenário de destruição e desolação, não há nenhum dado histórico que torne possível estabelecer uma conexão factual no sentido de orientar a leitura do poema a partir de um referencial efetivo. Há, pois, uma indeterminação que se abre como uma dimensão a ser ressignificada pelo leitor, estimulando sua atividade ideacional a partir desse intervalo semântico, o que permite ao poema um diálogo permanente com o tempo presente ou como uma leitura do presente, no sentido a-histórico, operando a desconstrução de uma suposta determinação histórica que o ligasse objetivamente à Segunda Guerra Mundial.
Para Wolfgang Iser (1999, p. 28-29), em sua Teoria da Recepção, o ato de leitura se constitui através de uma estrutura básica do texto que consiste no encadeamento de segmentos formulados e interligados semanticamente, determinando sua significação. Por outro lado, nesse processo de significação há uma dimensão que se permite permanecer aberta, constituída por espaços indeterminados e pela ausência de conexões referenciais. Esses espaços foram denominados por Iser como “lacunas” (1999, p. 31.), ou seja, como intervalos que vão possibilitar a ressignificação do texto pela negatividade inconsciente do leitor, tornando o texto um ‘jogo’ entre o que está expresso e o que não está formulado. Segundo ele, “ao texto formulado e verbalizado corresponde uma dimensão não formulada, não escrita. A essa ‘duplicação’ do texto chamarei negatividade”, que pode ser apreendida por três características.
A primeira delas se passa no nível formal, como ato constitutivo do processo de leitura, quando a negatividade é suscitada pelas lacunas, permitindo abstrações individuais e insights por parte do leitor. A segunda dirige-se aos infortúnios e deformações inerentes à experiência humana, caracterizando a negatividade em um nível contextual de sua própria condição. Por último, Iser (1999, p. 32-33) aponta a negatividade que se manifesta ao nível comunicacional, como uma estrutura subjacente e não formulada no texto, ao operar como elemento desarticulador do real, na medida em que ‘traz para o mundo algo que não estava lá’. De um modo mais assertivo, ele concluirá que “a negatividade exige um processo de determinação que só o leitor pode implementar.”
Categoricamente, Iser afirma que: “A negatividade, no verdadeiro sentido do termo, não pode ser deduzida das realidades referenciais por ela questionadas e não pode ser vinculada a uma ideia substancialista que ela anunciaria. Assim como a não formulação do ainda não compreendido, a negatividade faz mais do que simplesmente assinalar uma relação com aquilo que põe em questão, estabelecendo um elo básico entre o leitor e o texto. Se o leitor é levado a conceber a causa subjacente àquele questionamento do mundo, isso significa que ele deve transcender esse mundo para ser capaz de observá-lo de um ponto exterior a tudo aquilo em que de outro modo ele estaria tão inextricavelmente enredado. Desse modo, a função comunicativa da literatura se evidencia e se realiza. A negatividade enquanto componente básico da comunicação é, portanto, uma estrutura capacitadora”. (ISER, 1999, p. 33).
Com base na teoria de Iser, pode-se dizer que a experiência do poético consiste no reconhecimento do ato da leitura como um advento capaz de proporcionar uma comunicação que só será possível por meio da negatividade.
Segundo ele, é possível crer que a comunicação oriunda da experiência poética se passa intrinsecamente ao nível da inconsciência do leitor, o que motivará o processo de (res)significação do texto permanentemente, pois, ao mesmo tempo em que estimula o leitor a produzir sentido, capacita-o a consolidar um saber inalienável acerca da dimensão humana. Deste modo, a leitura do poema transubstancia-se como um pequeno acontecimento capaz de proporcionar a experiência de uma verdade por meio da negatividade.
Em “A noite dissolve os homens”, o poema torna-se a imagem arquetípica do próprio sujeito em devir, quando a noite e a aurora se transfundem, descentrando-o pela tensão entre a obscuridade e a iluminação. Na medida em que a experiência do poético se passa por entre as frestas da negatividade, eis que a dimensão humana se revela, quando a vida se transmuta sob a forma de um acontecimento pela força de sua imagem, suscitando nossa incapacidade, nossa impotência, nossos medos e nossa sombria solidão, em contradição com nossos sonhos, desejos e nossa esperança que se ilumina em meio à treva.
Ao fim, não há mais o tom adivinhatório ou profético do poeta, mas sim uma imperiosa ordenança e necessidade de amanhecer, de viver o presente, recriando-o com as cores do sangue derramado pela ferocidade, e que agora servirá para tingir o futuro com as cores da memória do vivido.
“Havemos de amanhecer.
O mundo se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora.”
Diante da presença irremediável da noite, os suicidas talvez tivessem razão. No entanto, ao final, o poeta proclama seu chamamento à vida, como se vislumbrar a aurora fosse, mais que esperar por ela, desejá-la, impregnando-se dela como um devir através do qual a vida se transfigura pela força do poético.
Portanto, é a experiência dramática e irredutível do poético que amplia a dimensão do presente, uma vez que este é marcado pelo signo da ambivalência entre o passado e o futuro, entre viver e morrer, agir e contemplar, de modo que, como diz Octavio Paz, “viver bem exige morrer bem. Temos que aprender a olhar a morte de frente. Alternativamente luminoso e sombrio, o presente é uma esfera onde se unem as duas metades, a ação e a contemplação”. (PAZ, 2017, p. 91).
Nesse sentido, é como se a dicção meditativa da lírica de Drummond desarticulasse o tempo e o espaço, deflagrando a realidade de uma subjetividade em crise, ao redimensioná-la no presente por meio da experiência poética, tornando possível recriá-lo ao mesmo tempo em que se tece a memória do futuro. Todavia, em Drummond, tanto a expressão da solidão e do mal estar no mundo são decorrentes de um sentimento de incompletude e desconcerto, manifestando o desejo de compartilhar a perplexidade em face do mundo civilizado.
Novamente, para Octavio Paz (2013), além de revelar a condição humana em sua profunda dramaticidade, a experiência do poético é capaz de retirar o presente do fluxo contínuo do tempo, suspendendo-o através das fissuras de um tempo incapturável, até recriá-lo em sua plenitude, isto é, potencializando suas virtualidades por meio da substância humana que se funde ao poético como ação e contemplação.
“O poema é uma obra sempre inacabada, sempre disposta a ser completada e vivida por um novo leitor. [...]Assim, aquilo de que o poeta fala (o isto e o aquilo: a rosa, a morte, a tarde ensolarada, o assalto às muralhas, a reunião dos estandartes) se transforma, para o leitor, naquilo que está implícito em todo dizer poético e que é o núcleo da palavra poética: a revelação da nossa condição e sua reconciliação consigo mesma. [...] Não é uma explicação da nossa condição, mas uma experiência em que a nossa condição, ela mesma, se revela ou se manifesta. [...] A experiência poética – original ou derivada da leitura – não nos ensina ou nos diz nada sobre a liberdade: é a própria liberdade se expandindo para tocar em algo e assim realizar, por um instante, o homem”. (PAZ, 2013, p. 198).
Logo, se a civilização moderna perdeu seu sentido de comunidade ao estimular o individualismo e deteriorar as relações interpessoais, a verdade expressional pela qual a lírica de Drummond revela sua magnitude se deve à capacidade de situar-se em meio à perplexidade diante da barbárie e reificação do homem. Talvez a substância de sua lírica seja também capaz de nos absorver em uma experiência real, permitindo-nos comungar por meio das palavras o silencioso transbordamento das angústias, das torções e até mesmo da morte.
Assim, diante da insuficiência do real, a experiência poética funde-se ao presente para expandi-lo, redimensioná-lo, recriando-o na comunhão com o outro através de sua dimensão negativa, exortando-nos ao desejo de reinvenção do próprio homem pela ambivalência das imagens que se elevam de sua linguagem.
Para o poeta, a poesia é onde o homem se funde ao acontecimento por meio da palavra, abrindo-se ao devir da antemanhã, para que se possa, então, sob o desejo de nela habitar e permanecer, transcender o obscurantismo que nos cega. Contudo, é nesse sentido que a absorção da experiência poética nos impele a recriar o presente e a iluminar o porvir, desembrutecendo-nos, todavia, da barbárie inoculada pela civilização.
REFERÊNCIAS:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.
ARRIGUCCI Jr., Davi. Coração partido. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras Escolhidas, 1)
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004.
ISER, Wolfgang. “Teoria da recepção: reação a uma circunstância histórica”. In.:Teoria da ficção: indagações à obra de Wolfgang Iser. (org) João Cezar de Castro Rocha; tradução Bluma Waddington Vilar, João Cezar de Castro Rocha. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. (VII Colóquio UERJ)
MOURA, Murilo Marcondes de. “Carlos Drummond de Andrade e o Sentimento do mundo”. (Org) Murilo Marcondes de Moura. Caderno de Leituras Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Cia Letras, 2012.
PAZ, Octavio. A busca do presente e outros ensaios. Trad. Eduardo Jardim. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2017.
______. O arco e a lira. Tradução Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac & Naify, 2013.
*Colaborador externo.