Arrabalde, uma leitura

Por Henry Burnett

Alguém pode nascer em Belém, viver na cidade até os 27 anos sem viajar mais de 100km de distância no seu entorno e, ainda assim, crescer de costas para a Amazônia, simplesmente não ver a floresta – a não ser pela famosa “escadinha”, um dos poucos lugares de onde se podia olhar o rio naquela época, no início da década de 1980, algo que não mudou radicalmente, embora tenha ganho projetos urbanísticos importantes como o “Ver-o-rio", cujo nome já diz tudo, ou visitando o Museu Emílio Goeldi aos domingos. Foi lembrando desta experiência pessoal que ouvi pela primeira vez João Moreira Salles comentar sobre a decadência da minha cidade natal em uma conversa no YouTube; um dos inúmeros relatos de sua expedição pela Amazônia.

Li entre arrebatado e ligeiramente incomodado o conjunto de textos publicados na revista Piauí ao longo de vários meses, antes de ver alguns daqueles vídeos que ele próprio captou desde a primeira manhã de sua estadia em Belém, da janela do apartamento onde se hospedou. Relidos agora em versão revista na edição em livro, Arrabalde: em busca da Amazônia [Companhia das Letras, 2022] me causou menos incômodo; ainda assim, tentarei sintetizar aqui aquela dupla sensação inicial.

A primeira impressão é que João entra na floresta desarmado, não se arvora nenhuma condição especial, antes faz questão de dizer que “Embora a Amazônia seja o ativo mais precioso que o Brasil possui, eu, um brasileiro adulto com meios para viajar, jamais havia estado ali nem por quatro dias [...]”. Sua preocupação é real e o livro se junta a outros projetos ligados ao seu nome, nos quais sempre distingui uma probidade digna de nota – a revista Piauí e o Instituto Serrapilheira são os exemplos mais destacados –, como quando escreve que “Somos os guardiões desse legado [a Amazônia]”; num país onde a elite despreza tudo que, sob sua ótica tacanha, cheira a “popular”, isso já diz muito sobre o autor. Sua consciência política, social e científica ao longo das quase 400 páginas é transparente como os igarapés da infância, e é a partir dessa posição que sobressai uma tarefa inglória, a saber, a de fazer com que o Brasil olhe para a Amazônia, algo que muitos talvez façam pela primeira vez. Mas não apenas isso, o autor também considera urgente que cada um de nós se responsabilize por ela.

Na quarta capa o leitor é induzido a identificar o livro como uma expedição moderna, nos moldes daquelas que realizou Humboldt, Henry Walter Bates e Alfred Russel Wallace, ou mais recentemente Mário de Andrade, Euclides da Cunha e outros, todos citados no livro. Não deixa de ser verdade. Mas, se o livro encerra, como em algumas dessas célebres viagens, uma intenção de catalogação, esta envolve não mais espécies da fauna e da flora, mas um elenco de desastres, com pontuais ações de sucesso.

João saiu em busca dos pioneiros, que para lá seguiram motivados por facilidades econômicas na aurora da ocupação, ainda nas décadas de 1960 e 1970, motivados quase sempre por projetos criados durante a Ditadura Militar. Monta um quadro amplo dessas empreitadas, quase todas fracassadas – Paragominas é um dos poucos exemplos onde mudanças de comportamento e ação resultaram em melhorias gerais. O tom geral é que ali “não existia nada” e por isso era preciso produzir algo para ocupar esse espaço. Dá voz a uma diversidade de opiniões surpreendente, muitas vezes eticamente dissonantes, como quando cita trechos de conversas tanto com um ex-governador do Pará, Simão Jatene – que, tudo indica, acredita que foi reeleito duas vezes em razão de seus cuidados com a Amazônia paraense, no mínimo uma indelicadeza com os dedicados artistas que deram tudo por ele durante esses mandatos –, quanto com o jornalista Lúcio Flávio Pinto – de longe uma das pessoas que mais conhecem os problemas da ocupação da região –, na mesma página e emprestando-lhes o mesmo peso, algo que parece uma escolha deliberada de deixar falar todos que têm algo a dizer sobre as catástrofes que se abateram ininterruptamente sobre a Amazônia, indiferente, a princípio, a correntes ideológicas e partidarismos políticos.

Na comparação com a ocupação do oeste estadunidense, nos saímos mal, “A expansão do território norte-americano produziu uma épica que se espalhou mundo afora [...]. Ser um cidadão dos Estados Unidos da América é saber que aquela paisagem corre dentro de você – ela é sua. O contraste com o Brasil não poderia ser maior”. Poucos brasileiros sentem identificação com a Amazônia, é o que fica em pano de fundo. A visão do bioma como um espaço impenetrável e assustador marcou e definiu essa distância. João mostra isso através de filmes, livros e mitos construídos sobre a floresta misteriosa.

Todavia, o livro pode ser lido de várias maneiras. O estilo elegante seduz, mas os dados constantemente nos deslocam do conforto que o gênero literatura de viagem costuma trazer ao leitor; não há quase nada de idílico no relato. Aliás, previno o leitor que o livro exige atenção e paciência, pois o número de dados manipulados excede de longe as descrições do flaneur. Talvez um ou outro pesquisador reclame mesmo da precisão do tratamento dos dados, mas a verdade é que grande parte do livro é preenchido com centenas de informações técnicas tomadas pelo autor de conversas com diversos pesquisadores de várias épocas; um equívoco aqui e ali seria inevitável. Nesse sentido, o livro espelha sua própria atuação no fomento e respeito à ciência produzida no Brasil. A mensagem é clara: “Talvez nenhum país tropical disponha de infraestrutura técnica –universidades, institutos, pesquisadores, organizações não governamentais – tão robusta quanto a nossa. Quando a política se alinha ao conhecimento, o Brasil é competente [...]”. Não é possível ser mais claro quanto à sua posição no quadro político atual.

Apesar disso, o livro mal se refere às Universidades da região, quando o faz é de modo pontual e indireto, um evento, uma pesquisa, nada aprofundado. Como me disse o professor Ernani Chaves, "A UFPA tem 12 campi, é a maior universidade Multicampi do país: Abaetetuba, Altamira, Ananindeua, Belém, Bragança, Breves, Cametá, Capanema, Castanhal, Salinópolis, Soure e Tucuruí. Existem ainda a UFOPA, Universidade Federal do Oeste do Pará [a mais citada no livro], com sede em Santarém e que impacta aquela região, e a Unifesspa, Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, que também produz efeitos numa região problemática. E ainda a UFRA, Universidade Federal Rural da Amazônia. Vários desses campi tem programas de pós-graduação, alguns com mestrado e doutorado. Pesquisas de alta qualidade que procuram colaborar com a melhoria de vida das populações ribeirinhas e originárias, respeitando o meio ambiente etc. Pesquisas que unem história, antropologia, engenharias, geologia, biologia e diversas outras áreas. São resultados que não são imediatos, evidentemente, mas não assistimos passivamente à devastação”.

Isto é, continua o professor, “não se trata de achar que existe uma Amazônia intacta, é claro, mas que existem várias. Que milhares de jovens festejam sua aprovação no Enem e não precisam sair de suas cidades para cursar uma Universidade Federal. Antes só os privilegiados podiam sair para estudar”. Seu depoimento nos ajuda a entender que Arrabalde talvez tenha uma intenção pontual, que entendo ser a correlação entre diversas perspectivas que, juntas, permitem um diagnóstico do passado sem deixar de propor alternativas ao futuro; dito de outro modo, o livro expõe os efeitos de décadas de descaso e mostra a urgência de ações políticas reparadoras. Por exemplo: é nítido que as entrevistas foram feitas mais com empresários que com professores da região; foi uma opção deliberada que tem a ver com a intenção geral do livro? Tudo indica que sim.

Por onde se olhe, a tarefa não era simples e não caberia tudo na empreitada. O livro cumpre menos uma função científica que uma função política e, nesse sentido, não há como negar, sua publicação é de suma importância. Com isso quero dizer que visibilidade que o autor empresta ao debate é inalcançável pelo viés acadêmico. Mas não se pode tirar um mérito: João leu muito para escrever o livro. O volume de informações chega a cansar o leitor mais afoito por descrições paisagísticas, que surgem no livro como momentos de descanso em meio a tanta destruição e más notícias.

O livro não poupa críticas ao ex-presidente Jair Bolsonaro e nem elogios a Lula e Marina Silva pelo que fizeram no primeiro mandato. Na verdade, a situação que nos encontramos em relação à Amazônia decorre principalmente do fato que “A despeito dos riscos crescentes que a devastação ambiental na Amazônia tem representado para quem exporta, Jair Bolsonaro continua a ser um dos políticos mais populares entre os produtores rurais. Laços ideológicos aparentemente se sobrepõem a considerações econômicas, mesmo sob o risco de automutilação”. Numa inversão didática, diríamos, “a ignorância venceu o medo”, e nada indica que não possa vencer de novo. O livro não deixa de ser um alerta sobre a possibilidade de um recrudescimento que poderia levar a Amazônia a um ponto de desmate sem retorno.

O incômodo que mencionei no início dizia respeito ao diagnóstico que João fez de Belém: “Um grau e meio de latitude separa Belém da linha do Equador. De dia, o sol fustiga tudo a cabeça, os ombros, o rosto, os postes [...]. O sol fustiga tudo [...]. O sol que nasce em Belém bate numa cidade separada de sua paisagem. [...] o que se vê do alto de um prédio é uma bola de fogo que martela o concreto e o aço [...]. Calhou de Belém estar ali, mas poderia estar em outro lugar. A impressão é de que Belém já não sabe onde está”.

Estas e outras passagens me fizeram lembrar alguns caminhos e lugares percorridos depois que saí da cidade. O Rio de Janeiro, onde vivi seis anos, mais três em Campinas, quatro temporadas em Berlim, alguns meses em Lisboa, o desterro, enfim. Na capital portuguesa, do alto do Castelo de São Jorge, entendi num lance mais do que tudo que li sobre a destruição da minha cidade. Num raio de quilômetros a partir da orla não via nenhum prédio alto, como se a Cidade Velha de Belém se espraiasse até o entorno do Bosque Rodrigues Alves e só dali para a frente fosse autorizada a construção de prédios, todos com o máximo de seis andares. Entendi que copiamos o modelo urbanístico de Lisboa, o destruímos em menos de 200 anos e agora vamos lá nos deslumbrar com a beleza da cidade deslumbrante.

Lembrei do impacto primeiro de ver o Morro da Mangueira a partir do entorno do nosso apartamento no Maracanã, dos 47 graus, da pele embaixo do braço de soltando como se estivesse derretendo, enfim, da beleza relativa do Rio de Janeiro; lembrei da fuligem da queima da cana-de-açúcar cobrindo o pátio da nossa república em Campinas e dos meus amigos me dizendo que ela vinha pelo vento lá dos lados de Ribeirão Preto, da baixa umidade a qual meu corpo nunca se adaptou e que me torrava a pele esfoliando meu rosto todos os dias até hoje.

Mas uma cena me tocou em especial, a partir da imagem que João reproduz ao sair de Santarém na direção sul, “À direita, quase ao alcance da mão, o viajante verá correr a Floresta Nacional do Tapajós [...]. À esquerda, os olhos não encontrarão nenhuma barreira [...]. A paisagem mudará pouco durante uma hora, e então será outra. Não à direita, onde a floresta seguirá margeando a estrada ainda por duas ou três horas. A grande transformação acontece nas janelas da esquerda. A topografia mais acidentada e as condições climáticas menos favoráveis à soja farão com que a lavoura se torne mais rara à medida que o casso avança. Então desaparecerá por completo. O que ocupará o lugar dela é nada”.

A imagem me lembrou a primeira viagem de carro que fiz entre Campinas e Marília, cidades de São Paulo. As montanhas me impressionavam, eu que vim de uma terra plana [espero que entendam]. À medida que nos distanciávamos em direção ao Oeste do Estado – atenção para a não coincidência com o exemplo dos EUA – todas as árvores iam gradativamente desaparecendo. Ao contrário da experiência do autor, vi pela primeira, onde um dia existiu uma densa floresta, o nada. Não de um lado da rodovia, mas dos dois.

Talvez visse pela primeira vez plantações de soja, a mesma cultura que serviu tantas vezes de pretexto para desmatar e que talvez seja um dos motores simbólicos da concepção que rege a relação de muitos sulistas com o Norte/Nordeste do Brasil. Sentem-se ricos no nada, olham para a floresta de muito longe, não veem nada, votaram majoritariamente por duas vezes naquele que promoveu a invasão recente mais ostensiva e maléfica da Amazônia, coniventes com a matança dos indígenas, com o “empreendedorismo garimpeiro”, com os assassinatos de quem ousa defender a vida dos outros, orgulhosos da riqueza do seus estados sem floresta – “Como ele [Bolsonaro] foi eleito pela maioria dos brasileiros, desde 2018, e até segunda ordem, essa é também a utopia do país”. O que os fará acreditar que manter a floresta de pé é o maior desafio e a maior responsabilidade do país hoje, nossa última contribuição afirmativa ao mundo? Resposta: nada.

Quando o leitor decidir seguir o conselho do escritor e viajar para a Amazônia, sugiro escolher um assento do lado direito do avião, de preferência num voo noturno. Quando o comandante informar que “estamos em procedimento de descida para o aeroporto de Val-de-Cans", caso o destino seja Belém, o avião vai dar uma guinada para a direita e então a cidade vai surgir recortada com suas luzes e o espectador vai divisar a linha que a separa do rio.

Olhando atentamente, é possível ver que a cidade de mais de dois milhões de habitantes, considerando a região metropolitana, parece uma ilha de onde só se sai pela BR-316. Seus espigões disformes, que provocaram a primeira reação melancólica em João Moreira Salles – mas, afinal, qual capital brasileira não segue este modelo urbanístico? –, são o sonho de consumo das classes altas da cidade, empreendimento avarandados voltados para o rio [que sorte a deles], e que, apesar do custo de milhões de reais, são vendidos na planta.

Nos feriados prolongados a cidade caótica sai motorizada e com o ar condicionado no talo, levam horas para chegar em qualquer balneário, outras tantas para retornar. Nós que sempre quisemos parecer com São Paulo, já podemos nos orgulhar. É verdade João, a cidade poderia estar em qualquer lugar, e não duvido que aquela margem direita de sua descrição não tarde a desaparecer simbolicamente em Belém, isto é, o que nela resta de verde talvez venha um dia a não existir. O que me incomodou foi ouvir você falar mal de Belém, não por discordância, mas por ciúme, pensando que só nós, nativos, podemos falar mal da nossa cidade em chamas. Mas veja, há também outras Beléns que você não podia conhecer em poucos meses...

Mas entendo seu argumento. Quando os carros entopem a saída da cidade, já em Ananindeua, tudo trava, os ânimos fervem e nada parece possível, então me ocorre acreditar que não temos mesmo para onde ir.

 

Henry Burnett é professor livre-docente da EFLCH/Unifesp. Recentemente publicou Espelho musical do mundo [PHI, 2021] e Meio-dia [7letras, 2021]