Cigarro de Artista: Munch, seu Autorretrato com cigarro e o caminho para a "degeneração"
Por Francisco Fontanesi Gomes*
Gostaria de dedicar este texto a todos os meus amigos e parentes fumantes.
Muito tempo se passou desde que a indústria do tabaco e do cigarro começou a se estabelecer no mundo como uma das mais lucrativas empreitadas do homem. Seus rendimentos anuais chegavam à casa dos bilhões durante todo o século XX. Mas também se foi o tempo em que era totalmente aceitável fumar. Manter este hábito, caro leitor, se tornou cada vez mais condenável com o passar dos anos. Existem histórias a serem contadas até hoje por nossos familiares de como até os anos noventa era permitido acender um cigarro em um avião, em um restaurante, em um quarto de hotel ou até mesmo em um almoço de família após a igreja. Existem histórias de pessoas que chegavam a fumar em suas camas, dentro de suas casas, ao lado de seus filhos no berço. E não se resumia a dois cigarros por dia. Muitas vezes eram dois, três maços por dia!
Mas essa história de amor e ódio, mal cheiro e elegância começaram a acabar ainda nos anos sessenta, quando diversos estudos publicados nas revistas médicas começaram a apontar o cigarro como o causador de uma série de doenças respiratórias e cardíacas; dentre as mais famosas: o câncer de pulmão e o enfisema pulmonar, maioria deles fatais e causados pela fumaça que consome o pulmão do fumante. Mas foi apenas nos anos noventa que medidas sérias começaram a ser tomadas contra o tabagismo. Uma das mais impactantes foi a proibição do fumo em qualquer lugar fechado. De um dia para o outro, uma série de locais que viviam enevoados pela fumaça da nicotina logo se tornaram lugar de expurgo para o fumante, que deveria se retirar do local para poder fumar ou encontrar um lugar escuso que permitisse seu hábito, que agora se tornara extremamente desagradável. Mas agora também se tornava socialmente inaceitável. Propagandas na televisão foram proibidas, espaços para não fumantes se tornaram a regra e um número de entrevistas de ex-fumantes que desenvolveram câncer, enfisema ou alguma doença cardíaca foram ao ar para mostrar como o vício na nicotina se converteu em um pesadelo que poderia ter sido evitado.
Mas, é claro, as sociedades humanas e sua mentalidade se transformam, sem necessariamente deixar tudo para trás. Eu mesmo, caro leitor, que fui criado em um ambiente antitabagista por meus pais e minhas avós, perdi um avô e um bisavô para o câncer de pulmão, não resisti. Sou fumante por mais de dez anos, agora. Por mais que tenha diminuído, mantenho firme meu maço semanal, meu cheiro empesteado nas roupas, meus dentes amarelados e, claro, minha falta de ar para subir a mais curta das escadas. Se um retrato meu fosse feito “ao natural”, não poderia faltar um cigarro e um cinzeiro, com certeza. Por muito tempo, meu vício tem tomado conta de mim. É difícil passar por qualquer situação sem um cigarro, seja ela feliz ou triste. Encontrar um amigo fumante é como encontrar um oásis no deserto, uma companhia que entende como você é dependente do tabaco e, mais especificamente, daquele cigarro. Muitas vezes nem chega mais a ser possível trocar de marca, por mais que ela esteja longe de certa qualidade. E, claro, a bebida também é um fator decisivo. Parece que o cigarro e a bebida foram feitos para se combinar, um alimentando o consumo do outro durante a noite.
Talvez essa tenha sido minha “porta de entrada” para o cigarro. Por mais que o tempo tenha se passado, o cigarro ainda era (e ainda é) um produto que carrega algo mais do que nicotina e quatro mil e setecentas substâncias tóxicas. Ele carrega uma carga simbólica muito pesada, sendo o apoio e objeto de admiração de diversas personagens da História da Arte, da Literatura e da Cultura. Talvez o que mais tenha me atraído, caro leitor, para este vicio tenha sido exatamente o mito a sua volta. Saber que artistas, escritores e intelectuais faziam uso do cigarro de forma absurda em suas vidas era e, ainda é, extremamente hipnótico para muitos de nós. Na nossa sociedade ocidental atual, a busca por elementos que possamos adotar para construirmos nossa identidade diferenciada se tornou essencial para a construção de nosso ser social. Se você se pretende intelectual, o cigarro “deve fazer parte de sua vida”, mesmo que você não sinta qualquer prazer com o hábito de fumar. Alguns preferem o cachimbo, outros charuto, mas o cigarro é aquele que está na frente de todos. Com sua simplicidade quase elegante e quantidades exorbitantes de nicotina, sua História com a intelectualidade é algo que também se compra, caro leitor, quando se compra um maço. Sua simbologia é tão importante quanto o produto em si.
Mas aí surge uma pergunta sua, caro leitor, que é: “bom, eu entendo um pouco dessa questão do cigarro, mas o que isso tem a ver com Munch e com a revista? Não deveríamos estar falando de cultura ou de Arte? Ou pelo menos você poderia nos dizer qual o momento em que o cigarro ganha essa carga simbólica tão forte?”.
Bom, meu ponto está exatamente nisso, caro leitor. Tentar refletir um pouco sobre essa origem da carga simbólica do cigarro e, em especial, a carga simbólica do cigarro transmitido pela pintura. E não há, caro leitor, um artista em que o tabaco esteja em mais evidência do que no norueguês Edvard Munch (1863-1944). Talvez não esteja se lembrando tão bem deste nome um tanto quanto esquisito, caro leitor, mas com certeza você já se deparou com alguma reprodução da obra mais famosa deste pintor norueguês, O Grito (Figura 1), de 1893. Sua tela é terrível aos nossos sentidos, demonstrando toda uma força angustiante, de uma figura quase que deformada, sem cabelos, sexo, ou realmente definível em algum aspecto. É o ator principal nesta ponte engolfada por um céu avermelhado e com tons de amarelo e laranja. Suas pinceladas deixam toda a tinta ondulada em diversos padrões, dando a impressão ao espectador que de que não apenas a pessoa está em movimento, mas todos os elementos que estão no quadro se movimentam, inclusive o fundo. Neste estilo abstrato de pintar, Munch consegue transmitir uma série de inquietações, que são interpretadas das mais diversas formas, inclusive como um sinal “profético” da Primeira Guerra. Independente das interpretações, é dos elementos que estão presentes neste quadro que se caracteriza o Munch da História da Arte como um pintor “expressionista”. Esta corrente do final do século XIX possibilitou uma mudança completa na linguagem artística. A pintura, que antes tinha temas elevados e nobres, como a “pintura de História”, paisagem, retrato e temas mitológicos, vai passar por uma grande transformação durante o século XIX e continuar em grande mudança até o século XX; Munch será um dos grandes artistas que representará essa mudança quase “brutal” dos temas artísticos e do fazer arte.
Mas você deve estar se perguntando, caro leitor: “entendi seu ponto, me lembro bem do Grito de Munch, especialmente no ensino médio. Ainda assim, não entendo a ligação entre o norueguês, o cigarro e o expressionismo. Na verdade, não consigo fazer muito bem a relação entre os dois. O que está acontecendo?”.
Bem, caro leitor, na verdade é porque ainda não lhe apresentei o verdadeiro objeto que liga todos esses elementos. Este é nada mais, nada menos, do que um autorretrato de Munch, intitulado Autorretrato com Cigarro (figura 2), pintado em 1895, dois anos depois de O Grito, também conservado no Museu Nacional da Noruega, em Oslo. Há tanto a escrever sobre este autorretrato de Munch... Mas, antes, talvez o melhor seja começar pelo elemento que me levou a escrever sobre este quadro: o cigarro. Se o quadro for olhado do ombro do artista para cima, é quase impossível identificá-lo, mas ele está lá, o cigarro, segurado pela mão direita do artista, entre seu indicador e o dedo do meio. Se não fosse pela posição da mão e da fumaça saindo do risco branco, seria bem difícil identificá-lo, exatamente pelo estilo de pintura de Munch. Ainda que seja um autorretrato, ainda é um quadro de um dos mais salientes exemplares do expressionismo. Sua capacidade de pintar de forma solta, sem pinceladas ou linhas definidoras, dá o tom mais livre da pintura, que não está muito preocupada em seguir regras acadêmicas de desenho ou de decoro. Isso faz parte, caro leitor, destes movimentos de Vanguarda na Europa do final do século XIX. O abandono de antigas regras e o estabelecimento de novas convenções transforma a pintura como era conhecida.
Entretanto, é necessário parar por um momento e refletir antes de continuar a descrição e observação de todos os elementos que vemos nesta tela. É necessário compreender alguns elementos do autorretrato. Mesmo neste tempo de Vanguardas artísticas, muitas convenções continuaram a existir, mas serão transformadas e ressignificadas, inclusive por Munch. Em muitos autorretratos, o artista sempre quis mostrar a sua capacidade de pintura capturando sua própria imagem e, ainda mais, o intuito era se mostrar como o mestre em sua arte. É possível encontrar exemplos bem claros que seguem este caminho, como alemão renascentista Albrecht Dürer, mostrando toda a sua capacidade em seu famoso autorretrato frontal (figura 3) com os cabelos e a barba todos chamativos e a sua mão a mostra, representando o quanto o artista consegue capturar “o natural” com seus pinceis, qualquer que seja a dificuldade. Outro artista que vai usar extensivamente seus autorretratos para treinar seu ofício da pintura e, ao mesmo tempo, mostrar o seu talento, é o holandês Rembrandt. Em especial, seu Autorretrato com dois círculos (Figura 4), com os típicos instrumentos de um artista: uma paleta e diversos pinceis, preparado para pintar seja qual for a encomenda. Isso sem citar os autorretratos de mulheres artistas, como o alegórico autorretrato da poderosa Artemisia Gentileschi (figura 5) como a própria pintura em si, ou a incrível Elisabeth-Louise Vigée-Lebrun (figura 6) e sua pintura rococó completamente encantadora do final do século XVIII. Esses autorretratos das artistas femininas merecem um texto por si só.
Independente do artista, é possível observar essa continuidade no tema do autorretrato de artista: mostrar sua técnica e experimentar, como argumenta a autora Shearer West em seu livro Retratística:
Dürer, Rembrandt, Sofonisba Anguissola, Van Gogh, Kollwitz e Schiele são apenas alguns dos exemplos de artistas que retornaram a si mesmos como tema de novo e de novo. Nesses casos os retratos serviam a diversas funções: como um mapa do envelhecimento, exploração das mudanças psicológicas ou a expressão de variados humores. Nos séculos XVI e XVII, autorretratos também serviam como um útil instrumento publicitário para os artistas, que os enviariam para as cortes com o intuito de divulgar sua habilidade artística para patronos em potencial (WEST, 2004, p. 146).¹
Perceba, caro leitor, como West percebe o autorretrato com uma gama de possibilidades para o artista, inclusive sua vida econômica, como mostrar todos os seus trabalhos e sua capacidade técnica, seja para uma corte na Espanha ou na Itália ou uma família burguesa na Holanda. Mas perceba também que este período que se expande do século XVI até o início do XIX, do artista de corte, mudou radicalmente com as transformações sociais brutais que ocorreram durante o século XIX. Munch está preocupado com outras questões. Assim como muitos de seus contemporâneos, ele não produz mais quadros por encomenda, nem tem o intuito de ser um pintor de corte dos reis da Noruega ou da Dinamarca. Seu interesse é continuar pintando o que lhe interessa e, eventualmente, conquistar um lugar em uma galeria importante de Oslo ou, quem sabe, de Paris. Seu estilo de pintura expressionista também está muito mais ligado à questão já presente nos autorretratos apresentada por West, como a “exploração das mudanças psicológicas, ou a expressão de variados humores”.
Estes elementos é que estão em voga na pintura de Munch. Ao invés de mostrar o que ele pode fazer como artista, é muito mais uma exploração de si mesmo e de seu estilo de vida que podem ser tema para a sua arte. Por isso, ao invés de paletas e pinceis, entre seus dedos se encontra um cigarro. Mas você deve estar se perguntando, caro leitor: “Então é isso o que Munch faz? Mas por qual motivo não mostrar todo o seu talento? Por qual motivo substituir seus instrumentos de ofício por um mísero cigarro?”.
Este é exatamente o ponto do artista, caro leitor. O pintor norueguês não deixa de mostrar seu talento e sua capacidade, mas seu interesse primário é explorar a si mesmo, em especial, a questão psicológica. Para compreender melhor o que estou escrevendo, analise por si mesmo o quadro, observe-o e poderá ver uma série de elementos que estão completamente ligados com o psicológico do artista, além de sua vida boêmia e pretensão como artista expressionista. Sua biografia também não está muito longe de sua arte; pelo contrário, muitas vezes elas estão juntas. Quando se recorda de um artista com condições psicológicas complexas (ou, como se diz, um artista “louco”) logo vem à cabeça o querido van Gogh e seu famoso caso da orelha, Gauguin e seu suicídio. O artista holandês passou por poucas e boas, mas seu contemporâneo norueguês não passou ileso. Desde cedo foi marcado por tragédias, como a morte de sua mãe e de outros familiares por tuberculose, além de seus próprios problemas de saúde, que o levaram quase à morte. Entretanto, ele sobreviverá aos diversos problemas de saúde e, ao mesmo tempo, será perseguido por eles quase por toda a sua vida e, ainda mais, terá uma mente cada vez mais sensível e um psicológico frágil. No meio de toda essa mistura, adicione dois elementos: o cigarro e a bebida. Munch irá se tratar diversas vezes em sanatórios pelo seu vício com o álcool, que o acompanhará por muito tempo em sua vida.
Alcoolismo e problemas mentais acabaram se tornando algo recorrente na História da Arte moderna. Apesar de diversos artistas contemporâneos a Munch pintarem este tema de bebedeiras nos cafés noturnos das grandes capitais da Europa, o artista norueguês se retira deste espaço dos cafés, e trará a bebida e a sensualidade como tema em seu quadro O Dia Seguinte, de 1894 (figura 7). O quadro mostra uma moça deitada em uma cama de casal, vestida, ao invés de nua, apesar da posição remeter a alguns dos grandes nus femininos da História da Arte europeia. Ainda assim, a sensualidade permeia a figura da mulher, com a sua blusa branca aberta, mostrando um pouco de seu torso, e seu cabelo, que parece escorrer pela cama através de sua cabeça repousada na ponta da cabeceira. Tudo o que se vê parece ser sobre a mulher deitada, mas em um olhar mais atento, caro leitor, é possível observar uma mesa no canto inferior esquerdo que muda todo o tema do quadro. Com duas garrafas praticamente vazias e dois copos, um vazio e outro com um resto de uma bebida marrom, esta tela se torna sobre uma noite de bebidas. Seu título contribui para uma compreensão ainda mais forte, O Dia Seguinte, para que seja entendido como o dia seguinte após essa noite regada a álcool; ou melhor, uma ressaca. Toda a sensualidade construída através do corpo da moça, seus cabelos caídos, sua camisa branca aberta, nada mais são do que o resultado de uma noite com um copo atrás do outro, e esta cena nada mais é do que a clara consequência dos efeitos da bebida (sejamos sinceros, caro leitor, são poucos de nós que nunca experenciamos uma situação dessas!).
Esta vida boêmia, coberta de álcool durante noites adentro, é parte da vida de Munch, uma vida que ele não terá vergonha de retratar, mesmo que não possa ser aceitável aos padrões sociais deste período da última década do século XIX. O cigarro não será motivo de vergonha: pelo contrário, aparecerá como um dos elementos centrais em seu autorretrato. Ao observar pedaço por pedaço de sua tela com um cigarro na mão, será possível perceber primeiro uma camada cromática muito especifica. Munch pensa alguns tons de cores que estão presentes por toda a sua tela, em especial o azul, roxo e marrom. Esses tons estão presentes em suas roupas e no fundo do quadro, o que faz com que suas vestimentas e seu cabelo se misturem e se confundam com o fundo do quadro, causando uma estranheza no espectador. Essa estranheza se multiplica mais ainda em suas pinceladas, extremamente visíveis em diversos pontos do quadro, inclusive com cores contrastantes muitas vezes, como uma pincelada em tom verde e amarelo. É possível perceber também, especialmente na parte inferior de seu autorretrato, que Munch deve ter usado uma grande quantidade de solvente, que deixa a tinta óleo muito mais líquida do que deveria, e acaba deixando marcas na tela, como se tivessem escorrido diversos pingos dela.
Toda essa confusão de cores, texturas e temas também se mostra no rosto e na mão do artista. Apesar de usar uma paleta de cores diferentes para a pele do seu rosto e sua mão, não deixa de ser mais inquietante o contraste causado. Como os tons são bem mais claros, é como se uma luz estivesse focada em seu rosto e em sua mão, deixando tudo ao redor muito mais escuro e indefinido. As pinceladas em seu rosto são evidentes, com os olhos muito delineados e com riscos amarelados em volta destes. E como se ele estivesse iluminado pela brasa de seu cigarro, com uma luz fraca e instável, que ora aumenta e ora diminui, causando toda essa estranheza no espectador. Seu bigode e olhos em tons azuis combinam com o cabelo e fundo da tela. Seus olhos estão mirando o espectador diretamente, mas, assim como o restante da pintura, também são extremamente inquietantes em sua coloração amarelada e o azul escuro de sua íris. Além disso, é possível perceber um interessante detalhe: ao observar mais de perto seu rosto, vê-se uma série de pequenos pontinhos azuis-escuros que o artista fez, provavelmente usando a tinta óleo bem dissolvida e com um pincel mínimo.
E, claro, logo ao lado de seu rosto, caro leitor, observa-se uma fumaça azul, decorrente da queima do cigarro, que aparece de forma simples em sua mão, como um risco branco, sem ao menos a brasa. A fumaça da queima é com certeza um elemento que identifica o objeto, que primeiro sobe para o rosto do artista e, depois, é como se se espalhasse por todo o ambiente. Quem fuma ou conviveu com fumantes sabe que a fumaça é densa e, apesar de aparentemente desfazer-se no ar, é como se ela continuasse no ambiente, deixando o ar “pesado”, digamos assim, especialmente para quem não fuma. Apesar do fumante se acostumar a fumar em ambientes fechados, ainda assim é possível perceber como a fumaça parece tomar conta do ambiente, junto ao seu cheiro e o do cinzeiro. Talvez este seja um dos motivos pelo qual se observam tantas pinceladas estranhas no fundo do quadro, pois Munch tinha o intuito de representar, em sua forma artística, esse efeito do cigarro.
O cigarro nem sempre tinha esse efeito perturbador em suas obras. No século XX, um bom tempo após seu autorretrato, Munch pintou o retrato de mais duas pessoas com o cigarro na mão, o de Marcel Archinard (figura 8), em 1904, e o de Thorvald Løchen (figura 9), em 1918. Ambos os retratos não têm o mesmo peso que o autorretrato do artista norueguês possui. A fumaça do cigarro mal aparece nestes dois retratos, sendo apenas um risco branco na mão das duas figuras. E mais, são quadros com uma tonalidade cromática muito mais clara e mais confortável aos olhos do que a grande confusão escura do autorretrato do artista. Isso quer dizer que Munch abandonou seu estilo? Não, pelo contrário. É perceptível que seu estilo continua contido em suas pinceladas e escolhas de cores; o que muda é o significado do cigarro. Nos retratos de Marcel Archinard e Thorvald Løchen, o cigarro parece mais um adereço do que uma peça-chave da composição. É isso o que torna o autorretrato de Munch tão único. O cigarro faz parte de todo o tema da pintura, inclusive do psicológico do artista. O cigarro em si ainda era uma certa novidade deste mundo industrializado que despontava no final do século XIX, e muitos membros da sociedade do período acreditavam que o cigarro trazia uma série de malefícios (sim, é isso mesmo, caro leitor: no século XIX!). Mas estes malefícios não eram as diversas doenças como o câncer de pulmão ou o vicio que a nicotina causa, mas algo muito mais complicado para o período: a degeneração.
Esta visão estava muito mais ligada com a mentalidade da sociedade daquele período, que viu surgir ideias como a degeneração e a eugenia. Estas viam uma série de indivíduos que “faziam mal” à sociedade, seja através de seus genes ou de seus costumes. Como afirma Vanessa Beatriz Bortulucce em seu artigo sobre o autorretrato de Munch, o público reconheceria bem o que o cigarro significaria:
[...] Pois o cigarro, no final do século XIX europeu, era um dos símbolos de identidades sociais marginalizadas, sendo associado com café noturnos, a pobreza, a doença e a morte. O hábito de fumar cigarros – diferentemente daquele de fumar cachimbos e charutos, considerados hábitos respeitosos e adequados – desafiava os limites das categorias de classe social alta e baixa, pois era consumido por aristocratas e proletários; desafiava a identidade feminina e masculina, pois era considerado um hábito efeminado; abalava os limites daquilo que se considerava uma mente sã e uma mente doentia, pois era considerado um símbolo de degenerescência (BORTULUCCE, 2008, p. 91).
A autora deixa claro como o cigarro é visto como um símbolo social intrigante. De um lado, era consumido por diversos extratos sociais, por outro, era visto como um caminho para a degeneração mental e a pobreza. Ou seja, o indivíduo que traz costumes ruins para a sociedade e a corrompe por dentro. Talvez não seja uma surpresa que em 1937 os nazistas elevem essa ideia de “degeneração” (em alemão, Entartung) ao extremo, e fizeram uma grande mostra chamada “Arte Degenerada” (em alemão, Entartete Kunst), que pretendia mostrar o quanto a arte moderna trazia valores completamente distorcidos e desprezíveis. Ainda assim, é sabido que muitos nazistas, inclusive Herman Göering, possuíam inúmeras obras de artistas modernos considerados degenerados, especialmente pelo seu valor internacional. E, claro, sempre adquiriam essas obras de museus de países conquistados ou de famílias judias, ciganas, dos homossexuais e entre outros “degenerados”. Infelizmente, caro leitor, não foi possível descobrir se algum quadro de Munch estava na exposição, mas é muito provável que ele também fosse considerado um artista degenerado pelos nazistas, tanto por sua Arte inovadora quanto por seus costumes.
Toda esta questão de um “tabu social” em torno do cigarro e de outros costumes boêmios é reforçada pelo Historiador da Arte Giulio Carlos Argan como um elemento muito presente na obra de Munch:
O fato realmente não é a descrição, inquestionavelmente aguda, de uma situação psicológica; é a concepção extremamente nova de valor, da função do símbolo, que é sempre o signo de uma proibição, de um tabu social, a maneira de significar algo que não pode ser dito em termos claros (ARGAN, 2010, p. 258).
Ainda que exista toda essa camada histórica e da mentalidade social do período sobre o cigarro, você deve estar se perguntando, caro leitor: “Compreendi bem toda essa questão social da degeneração e, nossa, como os nazistas eram hipócritas malucos. Ainda assim, o cigarro nunca foi bem-quisto, nem quando surgiu. Por qual motivo está se focando tanto no cigarro quando a pergunta já parece respondida?”.
É exatamente essa contradição do cigarro que parece ser ainda mais profunda. E o que o transforma em um vicio e em um símbolo para os “artistas e marginalizados”. Munch consumia tabaco, fumava e trouxe este elemento para a sua Arte. Eu acredito que ele não o tenha feito apenas pela questão social, que é muito importante; mas, para qualquer pessoa viciada no cigarro, ele parece fazer parte de todos os momentos de sua vida. Todo momento é um momento de fumar um cigarro. Acredito, caro leitor, que o vício de Munch o levasse a trabalhar fumando, assim como é representado em tantos filmes e documentários sobre vários artistas dos séculos XIX e XX. E é em razão de toda essa questão de um hábito considerado “marginal” e de uma classe de pessoas que viviam na “pobreza” que o cigarro ainda é quisto por muitos intelectuais e artistas. Seu símbolo é muitas vezes tão forte para o vício quanto a nicotina; é um símbolo “anti-classe média”, um símbolo de que não se é medíocre, de que se possui talento.
Gostaria de lhe agradecer mais uma vez, caro leitor, pela sua paciência com o meu texto. Eu também gostaria de agradecer ao meu querido amigo Lucas e à Revista Guaru por mais essa oportunidade de reflexão e experimentação.
¹ Tradução livre do inglês.
Imagens
Figura 1
Edvard MUNCH
Skrik (O Grito), 1893.
Tempera sob papel, 73.5 x 91 cm.
Nasjonalmuseet, Oslo.
Disponível em:
https://www.nasjonalmuseet.no/en/collection/object/NG.M.00939
Figura 2
Edvard MUNCH
Selvportrett med sigarett (Autorretrato com cigarro), 1895
Óleo sobre tela, 85.5 x 110.5 cm.
Nasjonalmuseet, Oslo.
Disponível em:
https://www.nasjonalmuseet.no/en/collection/object/NG.M.00470
Figura 3
Albrecht DÜRER.
Selbstbildnis im Pelzrock, 1500.
Óleo sobre tela, 67,1 x 48,9 cm.
Alte Pinakothek, München.
Disponível em:
https://www.pinakothek.de/kunst/meisterwerk/albrecht-duerer/selbstbildnis-im-pelzrock#
Figura 4
REMBRANDT Harmenszoon van Rijn
Self-Portrait with Two Circles, c. 1665–1669.
Óleo sobre tela, 114.3 cm × 94 cm.
Kenwood House, London.
Disponível em:
Figura 5
Artemisia GENTILESCHI
Self-Portrait as the Allegory of Painting (La Pittura) c.1638-9.
Óleo sobre tela, 98.6 x 75.2 cm.
Cumberland Bedchamber, Hampton Court Palace (Sobre administração do Royal Collection Trust)
Disponível em:
https://www.rct.uk/collection/405551/self-portrait-as-the-allegory-of-painting-la-pittura
Figura 6
Elisabeth Louise Vigée Le Brun
Self Portrait in a Straw Hat, 1782.
Óleo sobre tela, 97.8 x 70.5 cm.
National Gallery, London.
Disponível em:
Figura 7
Edvard MUNCH
Dagen derpå (O dia seguinte), 1894.
Óleo sobre tela, 152 x 115 cm.
Nasjonalmuseet, Oslo.
Disponível em:
https://www.nasjonalmuseet.no/en/collection/object/NG.M.00808
Figura 8
Edvard MUNCH
Franskmannen, Marcel Archinard (o francês, Marcel Archinard), 1904.
Óleo sobre tela, 185 x 70 cm.
Nasjonalmuseet, Oslo.
Disponível em:
https://www.nasjonalmuseet.no/en/collection/object/NG.M.00811
Figura 9
Edvard MUNCH
Thorvald Løchen, 1918.
Óleo sobre tela, 120 x 200 cm.
Nasjonalmuseet, Oslo.
Disponível em:
https://www.nasjonalmuseet.no/en/collection/object/NG.M.02080
Bibliografia
ARGAN, Giulio Carlo. A Arte Moderna na Europa: de Hogarth a Picasso. Tradução Lorenzo Mammì. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
BORTULUCCE, Vanessa Beatriz. O artista e o seu meio social: considerações acerca da pintura auto-retrato com cigarro de Edvard Munch. Atas do IV Encontro de História da Arte - A Arte e a História da Arte entre a Produção e a Reflexão. 2008
WEST, Shearer. Portraiture. Nova Iorque: Oxford University Press, 2004.
Vídeos e outros links
Edvard Munch: What A Cigarette Means:
https://www.youtube.com/watch?v=Iu2L7oA9QRg&ab_channel=Nerdwriter1
Sobre a exposição “Arte Degenerada” de 1937, ver:
https://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo328/arte-degenerada
*colaborador externo