Neste semestre assumi uma disciplina homônima ao título deste texto, “Filosofia, Ensino e Formação (1)”, voltada aos alunos do 7º termo, que estão concluindo o curso de licenciatura em filosofia na EFLCH/Unifesp. Como em qualquer disciplina é sempre desafiador selecionar os materiais bibliográficos que servirão de base às aulas e discussões; as múltiplas possibilidades, não raro, produzem a famosa angústia da liberdade. O que seria melhor para discutir com os alunos, mais adequado ao momento presente da universidade, do mundo e do Brasil?
O problema era potencializado na medida em que a cada ano parece menor a perspectiva de se dizer algo sobre o futuro, neste caso, como forma de incentivo à carreira docente, já que de um ponto de vista “estritamente filosófico” sabemos bem o pode ser estimulante na imensa bibliografia. Nietzsche, Adorno, Benjamin, Arendt, Rancière, a lista de filósofos contemporâneos que pensaram a educação é ampla. Se recuarmos até a Antiguidade e a Idade Média, encontraremos Platão, Santo Agostinho, Tomás de Aquino. A lista não para aqui.
Mas havia algo antes da seleção de livros e textos que me incomodava desde o final de 2024, quando a disciplina me foi destinada: o que dizer aos alunos e alunas a respeito de palavras tão carregadas de sentido como formação, filosofia e ensino num momento em tudo isso parece parte de outro tempo? Além disso, como sabemos, toda e qualquer reforma curricular do Ensino Médio tem dois itens intocáveis que sempre estão na mira dos burocratas bem intencionados: a filosofia e a sociologia – agora, mesmo no Ensino Superior público, esse avanço contra a reflexão e a crítica faz novas vítimas, como foi o caso da linguística, que acaba de sofrer um revés na USP, que decidiu acabar com a licenciatura na área. Um artigo de Dirce Waltrick do Amarante na Folha de S.Paulo (22/05/25) deixou explícito o que está por trás: “(...) a USP parece assumir assim a liderança, dentro das instituições públicas, no debate sobre o fim de faculdades cujos saberes não trazem lucro ou não tem inserção imediata no mercado. Em tempos de pragmatismo e pouca disposição para a reflexão, colocar um fim nessas licenciaturas é mais fácil do que pensar na importância delas para a sociedade”.
Portanto, esse programa normativo de destruição do ensino crítico que não cansa de vencer, com idas e vindas, é verdade, mas onde algumas pequenas vitórias são subjugadas por grandes derrotas cada vez mais definitivas por parte daqueles que, em algum momento da vida, decidiram se dedicar às humanidades, às artes e às letras. Por isso, a primeira pergunta que fiz, no primeiro dia de aula foi: por que vocês querem ser professores? Entre o silêncio e poucas manifestações – principalmente de quem já estava em sala de aula, concursado ou não –, tudo soava um desalento. Os motivos dessa sensação coletiva de derrota são sobejamente conhecidos, mas não são simples de entender.
Quando lia O mestre ignorante, de Rancière, que em certo momento mostra como os projetos da direita e da esquerda francesa para a educação resultavam, no fim, em algo muito próximo, lembrei de uma questão que só recentemente se colocou com força inaudita no debate público brasileiro na mesma chave: a ideia de que as universidades (públicas, na maioria) são um reduto do pensamento da esquerda, e que a maioria dos professores e professoras interdita a leitura de autores “liberais”, privilegiando autores “marxistas”. As aspas são fundamentais, porque os acusadores não compreendem, ou fingem não compreender, o sentido amplo dessas duas linhas de pensamento. No caso do liberalismo histórico a compreensão é enviesada, porque o utilizam como sinônimo de produção irrefreável e livre comércio, ou o que é pior, como expressão de “liberdade” para que se possa dizer qualquer ignorância sem responsabilidade e consequências legais – mas os direitos humanos, o Estado de Direito e a defesa da democracia certamente não fazem parte do pacote; no caso do marxismo, a leitura é somente burra, porque Marx não é lido nesses nichos, o que resulta na maior das aberrações: acusar um governo como o de Lula de “comunista”. O “liberalismo” para a direita brasileira dos nossos dias é base teórica do seu extremismo interesseiro e cínico; o marxismo, um veneno comunista. Há uma imensa bibliografia sobre isso, que não é o objeto central deste texto. Quero entender porque determinados valores são atribuídos à esquerda e outros à direita e porque a universidade seria “por natureza”, “comunista”.
A universidade incomoda o monstruoso projeto extremista nacional – aliado a uma onda de movimentos similares nos EUA, na Alemanha, em Portugal e tantos países –, porque é uma das mais fortes barreiras contra a consolidação do renovado neofascismo dos nossos dias. Nossos neofascistas brasileiros não sabem o que foi o nazifascismo, por isso não se reconhecem no movimento, que eles mesmos produzem, de restauro das suas bases no Brasil do século 20. Como não leem – cf. entrevista de Luiz Schwarcz ao Roda Viva da TV Cultura de SP – invocam valores que lhes parecem aglutinadores; o sucesso tem sido ostensivo.
Deus, Pátria, Família, Propriedade, Racismo, o Bem contra o Mal, todos esses elementos formaram a mentalidade nazifascista. No Brasil atual arrepiam a pele de uma grande horda de pessoas das mais variadas origens, desoladas num mundo devastado e que se sentem parte de algo imenso ao cobrirem o corpo com a bandeira do Brasil. Sua pequenez humana encontra amparo no programa extremo, única forma de se sentirem maiores do que são. A adoração do líder medíocre – um soldadinho insubordinado que se gaba da própria arrogância – é o sintoma máximo do nosso extremismo organizado, pronto a retornar ao poder sob os olhos incrédulos de um Governo Federal que não cansa de nos constranger, apesar dos avanços pontuais ofuscados por uma sequência incontrolável de erros.
Apesar do conhecido baixo letramento nacional, o que move uma pessoa a aderir ao neofascismo travestido de liberdade de expressão não tem a ver somente com a situação econômica, mas com a sensação de pertencimento, que motivou, por exemplo, os depredadores do Congresso no 8 de janeiro. Essa força popular da multidão tem facetas antagônicas; pode ser uma imensa roda de samba na Pedra do Sal ou uma horda de fanáticos espancando o corpo de um travesti ou destruindo um prédio público da justiça. Em ambos nossos corpos e desejos são ativados, mas com fins completamente antagônicos.
Diante de tudo isso, a universidade surge como um obstáculo. É nela que discutimos possibilidades de emancipação, onde divergimos, trocamos ideias, lemos juntos, pensamos, e principalmente imaginamos outro mundo, mesmo sabendo que todo conhecimento que possamos elaborar pareça inócuo diante da marcha do progresso e da produção. Não se enganem, ao relacionar a universidade com a esquerda, os burocratas e os políticos estúpidos que travam o país com seus interesses pessoais, querem eliminar uma das únicas contenções críticas que se mantém de pé sob ataque constante e cada vez mais violento. Se nossa tarefa é combater a destruição, a intolerância, o racismo, o egoísmo, a produção desmedida, o ódio, e se existe uma incansável tentativa de relacionar a universidade/esquerda à luta contra o que esses valores representam, nos orgulhemos da consciência do nosso lado da história – embora não considere essa luta deveria ser um patrimônio da esquerda, mas do humanismo.
No segundo turno da eleição vencida por Lula contra Bolsonaro, vivíamos um dos momentos de maior tensão social da história brasileira. Foi quando o termo polarização ganhou a dimensão que tem hoje – algo que nunca considerei um problema, saber quem são as pessoas e que lado elas assumem hoje no mundo: a destruição ou a harmonia, a questão é clara. Meu curso naquele semestre era dedicado a Primo Levi, um dos escritores mais importantes de um gênero literário chamado “literatura de testemunho”. Eu apresentava Levi aos alunos a partir do livro de Giorgio Agamben, O que resta de Auschwitz. Fiz questão de não fazer em nenhuma aula a chamada análise de conjuntura, por isso a querela política brasileira não era mencionada nunca.
O curso seguia seu rumo. Na semana anterior ao segundo turno, entrei em sala e sentei para organizar os materiais. Alguns alunos já estavam presentes, olhando seus celulares ou conversando. Um deles, com quem tinha algum contato pessoal entrou, me cumprimentou e atrás deles notei a entrada de um casal, que pelos traços eram obviamente seus pais. O pai sentou na última fileira, no canto, acanhado, mas a mãe sentou na primeira fila, a menos de dois metros de mim, na minha frente. A aula fluía normalmente. Esse curso é o único que repito periodicamente desde minha entrada na Unifesp em 2006. As três horas, como sempre, passaram rápido, pelo menos para mim. Quando perto das 22h00 dei a aula por encerrada e comecei a juntar os livros e os papeis, a mãe contornou a mesa e se aproximou de mim de forma incisiva. Suas palavras inesquecíveis foram mais ou menos estas:
“Professor, meu filho insistiu muito para que eu viesse aqui assistir uma aula sua. Acho que o senhor deveria gravar esta aula, colocar no YouTube, espalhar para o mundo. Nós discutimos muito em casa. Eu não entendo a posição dele, ele não entende a minha. Ele não me convence, nem eu consigo mudar o pensamento dele. Então ele disse apenas isso, ‘vá na Unifesp e assista uma aula do curso que estou fazendo’. Eu não sabia o que afinal poderia ser tão diferente do que já sabia e do que ele me dizia. Mas hoje, aqui na sua frente, eu entendi tudo que ele queria me dizer, e decidi mudar meu voto”.
Mudo, emocionado, envergonhado, mal esbocei um sorriso, um agradecimento.
Foi a aula mais importante da minha vida.
É isso que pode a universidade senhores, é isso que pode uma aula.
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Abaixo deixo ao leitor alguns fragmentos de textos que estamos lendo neste semestre.
A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário justificá-la. Não consigo entender como até hoje mereceu tão pouca atenção. Justificá-la teria algo de monstruoso em vista de toda monstruosidade ocorrida. Mas a pouca consciência existente em relação a essa exigência e as questões que ela levanta provam que a monstruosidade não calou fundo nas pessoas, sintoma da persistência da possibilidade de que se repita no que depender do estado de consciência e de inconsciência das pessoas. Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram essa regressão. É isso que apavora.
Em Paris, durante a emigração, quando eu ainda retornava esporadicamente à Alemanha, certa vez Walter Benjamin me perguntou se ali ainda havia algozes em número suficiente para executar o que os nazistas ordenavam. Havia. Apesar disso a pergunta é profundamente justificável. Benjamin percebeu que, ao contrário dos assassinos de gabinete e dos ideólogos, as pessoas que executam as tarefas agem em contradição com seus próprios interesses imediatos, são assassinas de si mesmas na medida em que assassinam os outros. Temo que será difícil evitar o reaparecimento de assassinos de gabinete, por mais abrangentes que sejam as medidas educacionais. Mas que haja pessoas que, em posições subalternas, como serviçais, façam coisas que perpetuam sua própria servidão (...).
(Theodor W. Adorno, “Educação após Auschwitz”, São Paulo, Paz e Terra, 2000)
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A encenação é a grande pausa criativa no trabalho educacional. Ela representa no reino das crianças aquilo que o carnaval representava nos antigos cultos. O mais alto converte-se no mais baixo de todos, e assim como em Roma, nos dias saturnais, o senhor servia ao escravo, assim também as crianças sobem ao palco durante a encenação e ensinam e educam os atentos educadores. Novas forças, novas inervações vêm à luz, das quais frequentemente o diretor jamais teve qualquer vislumbre durante o trabalho. Ele vem a conhece-las somente nessa selvagem libertação da fantasia juvenil. Crianças que fizeram teatro dessa maneira libertaram-se em tais encenações. A sua infância realizou-se no jogo. Elas não arrastam resquícios que mais tarde venham a tolher, com lamuriantes recordações da infância, uma atividade não sentimental.
(Walter Benjamin, “Programa de um teatro infantil proletário”, em: Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação, São Paulo, ed. 34/Duas Cidades, 2002)
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Tal foi a revolução que essa experiência do acaso provocou em seu espírito. Até ali, ele havia acreditado no que acreditam todos os professores conscienciosos: que a grande tarefa do mestre é transmitir seus conhecimentos aos alunos, para elevá-los gradativamente à sua própria ciência. Como eles, sabia que não se tratava de entupir os alunos de conhecimentos, fazendo-os repetir como papagaios, mas, também, que é preciso evitar esses caminhos do acaso, onde se perdem os espíritos ainda incapazes de distinguir o essencial do acessório; e o princípio da consequência. Em suma, o ato essencial do mestre era explicar, destacar os elementos simples dos conhecimentos e harmonizar sua simplicidade de princípio com a simplicidade de fato, que caracteriza os espíritos jovens e ignorantes. Ensinar era, em um mesmo movimento, transmitir conhecimentos e formar os espíritos, levando-os, segundo uma progressão ordenada, do simples ao complexo. Assim progredia o aluno, na apropriação racional do saber e na formação do julgamento e do gosto, até onde sua destinação social o requeria, preparando-se para dar à sua educação uso compatível com essa destinação: ensinar, advogar ou governar para as elites; conceber, desenhar ou fabricar instrumentos e máquinas para as novas vanguardas que se buscavam, agora, arrancar da elite do povo; fazer, na carreira das ciências, novas descobertas para os espíritos dotados desse gênio particular. Sem dúvida, o procedimento desses homens de ciência divergia sensivelmente da ordem razoada dos pedagogos. Mas não se extraía daí qualquer argumento contra essa ordem. Ao contrário, é preciso haver adquirido, inicialmente, uma formação sólida e metódica, para dar vazão às singularidades do gênio.
(Jacques Rancière, O mestre ignorante, Belo Horizonte, Autêntica, 2023)
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Escurece, e não me seduz
tatear sequer uma lâmpada.
Pois que aprouve ao dia findar,
aceito a noite.
E com ela aceito que brote
uma ordem outra de seres
e coisas não figuradas.
Braços cruzados.
(...)
(trecho do poema “Dissolução”, de Carlos Drummond de Andrade, Claro Enigma, 1951)