Goya: tradutor de uma época amputada

Lucas Carvalho Lima Teixeira

Para o Francisco.


Muitíssimo se depreende do caráter de pensamento de alguém a partir da maneira como o tal espontaneamente lê aquele fabuloso capricho de Goya, onde se diz em enfática estética lapidária: El sueño de la razón produce monstruos.

Como se lê essa sentença em clara e distinta língua portuguesa? Resta ainda alguma dúvida sobre como se deve traduzi-la? Pois é na tradução que se traz qualquer experiência para junto de nós; é somente na tradução que de fato pode chegar a experiência até nós – o dúctil latino que soa também nas palavras “condução” e “produção” encontra-se, aqui, com a sua própria razão de ser: ele somente existe enquanto algo por entre ele atravessa, enquanto se corta o vazio do túnel, enquanto se perfaz meramente travessia. A tradução traz para junto de nós a experiência na medida em que, nesta dança sem condutor definido, nos enfiamos de nariz na terra como tatus, desenhando em meio à cavucação as entradas por onde a luz da lua, do sol, das estrelas, dos postes ou o negro gravitoso do breu total poderá entrar. É isto, a tradução: cavucar entradas – que, a depender dos riscos, podem também nos servir de saídas. Sempre houve e ainda haverá muitos tatus neste mundo, embora a maioria hoje tenha crescido tanto e tão impertinentemente a ponto de tornarem-se genuínas máquinas retroescavadeiras, com suas penetrações geométricas, programadas, monorrítmicas. As pobres coitadas se esqueceram o que significa cavucar, se esqueceram das sendas inesperadas, dos desmoronamentos indesejados que mudam em um átimo o mapa todo do labirinto e da plasticidade mais ou menos concreta do chão. Tradução é milagre sem Criação, pois da experiência que a acompanha só se pode saber alguma coisa quando já se lhe deu as mãos, nem antes, nem depois. Tradução é aquela eterna primeira vez do ansioso contumaz: não é só de novo – é: e agora, deus?

O tatu, porém, cômodo bichinho, habita muitas vezes buracos já escavados – isso quando seus túneis, abandonados seja por desinteresse, imprecisão ou perigo, não são ainda reclamados com sonante, desarrazoado orgulho por outros animais noturnos de veia um tanto mais oportunista. Tradução também pode ser, portanto – em nossa época, um bom tanto! –, trabalho de formatação, processo que um tatu poliglota, polímata, nômade sem qualquer cidadania no horizonte ou na partida, um cavucador de primeira categoria, chamou certa vez de “escolarização”.

Como traduzir a sentença de Goya? Pensemos em primeiro lugar na frase e na deliciosa semântica ali contida, aquela que se quer verter para o português de nossos ouvidos – pois túneis antigos podem ser extremamente divertidos, se pudermos e soubermos cavar entradas desde ali de dentro, deixando algum ar circular de novo... Mas e agora? Todas as palavras ali contidas chegam com bastante clareza aos nossos ouvidos familiarmente ibéricos, exceto por uma: sueño – deixemos de lado, por um momento, as infindáveis e monótonas disputas filosóficas em torno do direito sobre conceitos como razão e afins (de resto, a deformidade dos monstruos não é “digna de ser questionada” pela realeza filosófica, afinal, salvo por um seigneur de castelo ou outro). Na língua espanhola, sueño comporta uma prolífica ambivalência, muitas vezes insanável: para o ouvido espanhol, diz tanto nosso substantivo português “sono” quanto o substantivo “sonho” – a peculiaridade aqui presente consiste em que a palavra em questão não evoca simplesmente dois significados diversos para o mesmo termo, mas, sobretudo, dá conta de evocar dois significados diversos, com desdobramentos inúmeros e muito singulares, porém inexpugnavelmente atrelados entre si. Isso se deixa reduzir à seguinte trivialidade, que nos devora a partir de nosso próprio descaso: no sono, necessariamente sonha-se e, no revés, somente se sonha, a rigor, enquanto se está a dormir, isto é, durante o sono. Deixemos à vista essa conexão.

Portanto, temos diante de nós duas vias de tradução para a mesmíssima frase. Por um lado, “o sono da razão produz monstros”, ou então, “o sonho da razão produz monstros”. Parte da crítica e da historiografia especializada assume sem mais objeções a primeira opção de tradução exposta como a mais adequada – mobilizada não apenas por uma circunstância de época mas, antes de tudo, por uma grave confusão (não de época, mas de civilização!) entre objeto, pressupostos de análise e ideologia iluminada, compram a crédito a noção de “sono da razão” como o antípoda daquela vigília altiva que nos vendeu Descartes, a poderosa chama do olhar capaz de purgar o homem dos desvios da intemperança, do acaso inalcançável e da anomia nos mais destacados ou remotos âmbitos da vida ou da natureza exterior; a razão tem, aqui, uma clara conotação positiva, instrumental e emancipatória, semântica perfeitamente harmonizada com o mito que então penetrava suas fundações em solo europeu no correr daqueles anos, e que culminaria muito rapidamente nas Luzes do século XVIII: Sapere aude! Enquanto dorme a razão, estamos sujeitos aos terrores da menoridade. Na outra ponta, entretanto, vigora uma interpretação bastante diferente: o “sonho da razão” pode, aqui, apontar precisamente para o projeto mesmo da razão esclarecida, suas expectativas e seu horizonte escatológico, isto é, um mundo ancorado sem exceções na economia da centralidade humana, na potência mediatizadora da técnica, na fé no poder de decifração e codificação do cálculo, no tempo enquanto via aberta de um progresso a priori infinito do engenho do homem sapiente... Nesse sentido, é a própria razão que, em seu difuso e radical sentido histórico, de fato gesta os seus monstros, carne da sua carne, herdeiros do que ela mesma já dispõe; é a própria razão que, em seu “vigilantismo” metodológico, ativismo intransigente e incontidos desdobramentos, produz a sombra da catástrofe – e isso de duas maneiras, umbilicalmente conectadas do ponto de vista de sua história: por um lado, é o estabelecimento da razão, enquanto referência pura da condição humana e do mundo em sua insondável extensão, que propriamente cria o contraponto monstruoso de tudo aquilo que não se apresenta imediatamente como algo indexado ou passível de ser indexado à cifra racional; parte essencial do estabelecimento da lei racional é a fundação, a ela coetânea, do universo transviante que então se impõe constantemente contra o aparato ordenador científico, ético, estético e filosófico (sabemos ao menos desde Paulo que não existe pecado sem lei que o geste); por outro lado, exatamente porque o seu estabelecimento impõe esta luta perpétua contra as desmedidas de sua medida inerente, é a razão ela mesma que se resolve em todo o seu caráter assombroso, ou seja, enquanto o fantasma que persegue inexoravelmente, como uma sombra indistinta, cada sutil movimento da existência – a “dialética”, por assim dizer, entre totalização e exclusão tem seu esquema mais cru ilustrado nos contornos sinuosos deste movimento. Reivindicando-se luz primeira do homem, da natureza e da história, proclamando-se a responsável pela gestão de todas as formas distintas passíveis de apreensão pelo intelecto humano, a razão se revela, no fim (ou seja, desde o seu começo), a mãe de toda deformidade – e uma mãe sempre protegerá sua prole com a vida.

Nesta altura, o tensionamento da ambivalência extravasa a letra lapidária para percorrer a cena inteira de Goya, talvez uma das mais vibrantes composições da arte desta Modernidade eternamente ensaiada. Chama a atenção para si o simultâneo atrito e complementaridade entre o primeiro e o segundo plano monstruoso do capricho: das profundezas nubladas do horizonte vemos aproximarem-se animais noturnos alados, cujos traços resumem-se basicamente a sombras dentro de um molde, enquanto investem resolutos em direção a uma figura humana debruçada sobre a mesa, escondendo a face. O jogo de distinção e indistinção entre os animais depressa salta aos olhos: em volta do dorso do homem debruçado estão o que parecem ser corujas – célebre totem ocidental do saber, vale recordar – com o olhar desesperado, uma fitando o homem (adormecido ou amedrontado, adormecido e amedrontado, tudo depende do “sueño” que se escuta) como se aguardasse, em gestual de urgência, por seu despertar, outra como que protegendo-o das demais criaturas com a larga envergadura de suas asas, uma terceira aparentemente em fuga atônita para fora do terror da cena e, por fim, ainda uma coruja mais próxima ao homem empunhando em suas garras o que parece ser uma pena de escrever, granindo em direção ao seu rosto como se procurasse devolvê-la às suas mãos, instando-o a perseverar na devoção à razão. Mas é só olhando muito atentamente e com demora – privilégio dos pensadores, não dos ativistas da razão – que notamos tais diferenças entre as criaturas luminosas e as criaturas sombrias, o que se traduz no óbvio jogo de luzes entre os dois planos mencionados. Um olhar ainda mais demorado – privilégio das pedras – sobre o capricho, contudo, notará ainda o seguinte: há na penumbra nublada um estremecimento de traços, muito característico dos céus pintados por Goya, que faz indiscernirem-se tanto as figuras luminosas do primeiro plano quanto as adventícias criaturas sombrias do segundo, e isso a ponto de interditar qualquer possibilidade de juízo acerca do seu estatuto – a simbólica integral do saber racionalizado presente na cena se engendra, pois, em uma espécie de vórtex interno, alheio a qualquer provocação ou acidentes estrangeiros, onde forma e deformidade, proporção e monstruosidade, luz e sombra se encontram progressiva e cada vez mais agudamente na mesma espiral de indistinção; o mundo em preto e branco, o oito ou oitenta da racionalidade positiva é transmitido em literalidade pictórica para o capricho, bem como sua confusão intrínseca para os traços borrados entre os planos. Assim, todas as criaturas da cena demonstram fazer parte de uma mesmíssima estirpe, isto é, o mito unívoco e furtivamente multifacetado da razão, apresentado na integralidade da sua dimensão catastrófica. O desespero das criaturas luminosas, lutando pelo despertar da figura humana para a assunção da perseverança e labor contínuos demandados pela razão, e a crescente sombra ameaçadora das criaturas noturnas, permanentemente à espreita, algumas aguardando serenas como se não fosse necessário qualquer movimento de sua parte para cumprir o desenlace fatal daqueles acontecimentos, são gestuais intimamente contemporâneos. Goya não desenhou dois caprichos diversos, sono e sonho da razão. Goya pintou um, o sueño da razão. Goya pintou luz e sombra, entusiasmo e horror do mesmíssimo acontecimento. A razão somente sonha quando já está a dormir. Alcançar seu horizonte, seu “sonho” projetado, depende de fechar os olhos e submergir no universo de suas próprias sombras, implicar-se no véu de sua própria imagem, a qual, perseguindo a métrica absoluta do mundo – não mais no antigo sentido metafísico-religioso da Medida una e substancial mas, antes, naquele da mera capacidade sem confissão de capturar cada experiência sob um qualquer número, peso e medida (Sb 11, 20) –, acaba por atirá-lo inversamente no mais absoluto e violento influxo da produção exponencial de números e medidas, o que também significa: na evacuação sistemática e permanentemente renovada de quaisquer medidas. Os monstruos noturnos não vêm da fenda dos infernos ou do lado de fora da cena: provêm do horizonte mítico da razão.

Com rara maestria, Goya nos conduz por um buraco interpretativo no qual o que se faz valer é a ambivalência em si mesma considerada através do incômodo significativo da letra e do traço, ao invés de traduções de pronta entrega, sejam elas entusiastas ou detratoras da razão esclarecida. Em um espirituoso movimento, similar àqueles de Blake – que pintou, numa mistura de ironia e profecia, a representação máxima do sujeito moderno emancipado precisamente sob a forma de seu maior algoz e deposto tutor, a divindade suprema e sua metafísica de fundo –, Goya nos coloca frente a frente com a nódoa deste fenômeno estético: a expressão “sono da razão” não implica a suspensão dos pressupostos e expectativas racionais mas, ao contrário, antecipa a introdução potente do único domínio onde suas metas e métodos poderiam ter se tornado possíveis, lá onde o mundo somente pode se apresentar sob a aura virtual da imagética onírica e, por isso, lá onde ele tem de render-se fatalmente aos fantasmas de sua plástica específica, aos fantasmas do seu próprio espírito errante. Poderiam contrapor a essas colocações o fato de que o domínio do sonhar é com plenos direitos aquele onde jamais poderia prevalecer uma figura como a do sujeito soberano consciente de si prometido pela razão esclarecida, bastião por excelência do projeto emancipatório moderno. Ora, responderíamos a uma tal observação dormente o seguinte: em que outro lugar poderia o aparato da razão predominar com tanta força senão lá onde não se é sequer possível oferecer qualquer esforço de resistência, senão lá onde tudo se dissipa em uma única projeção de pretensões universais, lá onde é a imagem que impera sem misericórdia ou acordo? Não está o homem a sonhar acordado quando inocula sua vontade e preceitos no mundo, quando imagina eus e tus e issos e aquilos e seus liames abstratos?

O genuíno monstro da razão, aquele de quem ela corre desvairada não como o Diabo corre da cruz (pois um não vive sem o outro), mas como corre o orgulhoso da indiferença, repousa precisamente na iminência de um despertar. Finda o sono, finda o sonho, fim do quadro.

El sueño de la razon produce monstruos

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