Música e crítica cultural: as subjetividades militares-armamentistas e a estetização da guerra na cultura gospel

Por Gabriel Marotti Ricardo

Introdução

Quem vive, viveu ou sobreviveu no Brasil da última década (2013 a 2023), que teve como marcos políticos acontecimentos como as manifestações de junho de 2013, o impeachment da presidente Dilma Rousseff (consolidado em 2016), a posse do então vice Michel Temer, a eleição de Jair Messias Bolsonaro à presidência da república (2018) e a pandemia do coronavírus (Covid 2019) a partir de 2020, acompanhou nessa ascensão da extrema direita uma grande presença política da comunidade cristã, em especial, a evangélica. Atrás do slogan fascista Brasil acima de tudo, Deus acima de todos – utilizado por Bolsonaro –, houve todo um apoio expressivo das igrejas neopentecostais que, em nome de valores morais, cristãos e patrióticos (aos gritos de “Deus, pátria e família”), contribuíram com um processo de militarização do governo federal e suas instituições políticas.

Neste artigo buscarei identificar aspectos da subjetividade militar e armamentista no contexto da cultura gospel, isto é, não necessariamente partindo da principal fonte das mensagens cristãs, a bíblia, mas demonstrando como a música gospel atua como importante meio de difusão de subjetividades que orientam as massas evangélicas em direção a estetização da guerra. Tal abordagem se dará em duas partes, sendo a primeira dedicada à análise musical e a segunda destinada a trazer subsídios teóricos, sobretudo a partir de Walter Benjamin e Sigmund Freud, para aprofundar a reflexão e sustentar a ideia que busco defender.


Música gospel e subjetivações bélicas

No campo político é comum que os progressistas observem com espanto essa forte corrente evangélica que relaciona Deus com armas e que elegeu e (ainda) apoia o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro (um militar que homenageou abertamente um coronel torturador no congresso). Tal incompreensão se dá, principalmente, pois os progressistas tendem a ver na figura de Jesus um humanista, acolhedor, que ama o ser humano pra além do pecado, e até mesmo dotado de um espírito anticapitalista, por uma série de questões demonstradas na própria bíblia, como o conhecido episódio em que Jesus se revolta ao ver que o templo havia sido transformado numa espécie de comércio (Mateus, 21:12).

No entanto, as referências que aproximam Deus, militarismo e armamento estão longe de serem consideradas um fenômeno inédito e recente. Inúmeras citações bíblicas poderiam ilustrar e justificar todo um campo semântico corrente relacionado a armas e militarismo, e que povoa o imaginário cristão. Porém, reconhecendo o lugar singular e simbólico que a música ocupa na cultura brasileira, sobretudo se considerarmos o maior alcance da oralidade em relação ao letramento no Brasil (cabe lembrar que o texto bíblico não é um tipo de literatura de fácil apreensão), abordarei este tema a partir de alguns exemplos na música gospel – abordagem que me parece ainda pouco explorada, mas bastante fecunda. O objetivo, com isso, é demonstrar que sendo a música gospel um importante instrumento na formação e difusão de subjetividades cristãs, ela é também um importante catalisador das ideias e intencionalidades trabalhadas pelas igrejas neopentecostais – movimento este em ascensão, que tem adquirido cada vez mais poder e influência na política brasileira (ANTONIO & LAHUERTA, 2014) –, devendo ser observada com maior atenção nos estudos sociais e políticos empreendidos nesse contexto.

Utilizarei três músicas de diferentes períodos e estilos no cenário da música gospel, que inclusive capturam um pouco das nuances entre as chamadas igrejas pentecostais (que preservam mais rigidamente algumas doutrinas e costumes) e neopentecostais (mais flexíveis nesses aspectos e com maior ênfase na música gospel). Partindo de um exemplo mais tradicional, extraído da chamada Harpa Cristã[1] (compilado oficial com mais de 600 hinos antigos da igreja Assembleia de Deus), encontramos no hino Campeões da luz[2] a seguinte mensagem:

Soldados somos de Jesus
E campeões do bem, da luz;
Nos exércitos de Deus,
Batalhamos pelos céus,
Cantando, vamos combater.
O vil pecado e seu poder;
A batalha ganha está;
A vitória Deus nos dá.

Breve vamos terminar a batalha aqui,
E p‘ra sempre descansar com Jesus ali;
Todos os que são fiéis ao bom Capitão,
Hão de receber lauréis como galardão.

Levai o escudo, sim, da fé,
Pois a peleja dura é,
Mas promessa temos nós
De jamais lutarmos sós.
– As flechas do mal não temer,
Mas combater até vencer,
Olham os campeões p’ros céus,
A vitória vem de Deus.

É justamente apoiada no texto bíblico que a canção constrói este cenário simbólico de combate espiritual. Antes de comentar a parte musical, vejamos outra música, bastante difundida no meio evangélico, que se chama Nosso general[3], versão de Adhemar de Campos, lançada em 1988, cuja letra diz:

Pelo Senhor marchamos sim, o seu exército poderoso é
Sua glória será vista em toda a terra
Vamos cantar o canto da vitória, glória a Deus
Vencemos a batalha, toda arma contra nós perecerá

O nosso general é cristo
Seguimos os seus passos
Nenhum inimigo nos resistirá

Já num andamento mais acelerado, que contribui para uma intencionalidade rítmica (mas também imagética) de uma marcha, esta música caminha no mesmo propósito da anterior, fazendo alusão a um campo de batalha onde o povo de Deus (que se reconhece como um exército) é marcado pela vitória. Esses dois primeiros exemplos estariam mais ligados às denominações mais tradicionais do contexto evangélico brasileiro, sendo bastante comuns em igrejas pentecostais como “Assembleia de Deus”, “Deus é Amor” e “Igreja do Evangelho Quadrangular” (embora a música utilizada no segundo exemplo possua características que a permitiu circular expressivamente em todo o contexto cristão).

Com outras sonoridades e marcando novas fases do movimento neopentecostal no Brasil, temos também a música Nossas armas[4], do grupo Renascer Praise – da igreja Renascer em Cristo, que revolucionou a música gospel sobretudo a partir do final dos anos 1990, introduzindo gêneros como reggae, rap, samba e rock (como no caso deste exemplo):

As armas da nossa milícia, são poderosas em guerra
A unção de conquista esta sobre nós, quem poderá nos vencer?

O Senhor dos exércitos, é o nosso general
(...)

Hoje é dia de vitória, conquistemos a terra em nome do Senhor...

Ainda na introdução dessa música de estilo roqueiro, enquanto uma guitarra com distorção exibe seu rife, a líder do grupo, bispa Sônia Hernandes, profere os seguintes dizeres: “O Brasil pra Jesus. Brasil, o nome do teu senhor é Jesus!”. Em geral, não é preciso muito esforço para perceber como o aparato militar-armamentista se faz presente nesta pequena letra, utilizado simbolicamente como armas, ou seja, como ferramentas necessárias à conquista de determinado objetivo – no caso, da conquista da terra em nome de Deus, ou ainda, mais especificamente, a conquista do Brasil pela comunidade cristã. Ou seja, as três canções citadas, atuam no mesmo campo subjetivo. No entanto, cabem algumas observações.

Com estética e reprodução mais tradicionais (utilizando cordas, sopros e coro) e num andamento em torno de 110 bpm, Campeões da luz utiliza expressões como soldado, capitão, exércitos e batalha etc., embora seu resultado musical, como um todo, não indique aspectos de ação. Já em Nosso general, que inicia com o som de pés marchando (acompanhados de palmas) em aproximadamente 132 bpm, as ideias em torno de toda essa subjetividade militar cristã ganham pulsações mais acentuadas, que indicam a movimentação de um povo determinado em direção a algum lugar bastante claro e definido (rumo a sua vitória / conquista) – cabe aqui lembrar que o maior evento evangélico do mundo chama-se “Marcha pra Jesus” e reúne, anualmente, milhões de fiéis no Brasil e no mundo, entorno da música gospel e deste ato simbólico de marchar pra Jesus. No terceiro caso, Nossas armas é tocada em aproximadamente 155 bpm. Tal andamento nos permite interpretar que já não se trata mais de uma marcha para algum lugar, mas que a canção exprime um estado de chegada e ação, ou seja, esta velocidade e a sonoridade ruidosa do rock contribuem para a implosão do inimigo num cenário em que a guerra já foi iniciada.

Como sabemos, todo esse simbolismo referente a figura de um indivíduo ou de um povo guerreiro que trava batalhas, que luta bravamente e alcança determinadas conquistas, não é uma exclusividade da cosmogonia cristã, uma vez que encontramos esse tipo de narrativa em diversas mitologias. Mas no caso da presente discussão, quando encontramos esse tipo de referência no universo cristão, é preciso compreendê-la, primeiramente, como recurso metafórico, ou seja, na mesma linha de abordagem em que o próprio Jesus se utilizava de parábolas para a construção de uma narrativa alegórica, capaz de transmitir suas mensagens indiretamente através de analogias, comparações etc.

Nesse sentido, num primeiro momento, quando nos deparamos com esse tipo de mensagem, seja em canções gospel ou em pregações (que recorre a termos como armas, exército, guerra etc.), compreendemos que se trata de alegorias para abordar o mundo espiritual, ou seja, um lugar em constante guerra, cujas armas para se vencer determinada batalha podem ser, por exemplo, jejum, oração, cantar um louvor, não cair em tentação, dar o dízimo, entre outras práticas ensinadas por Jesus ou por seus apóstolos.

Quando olhamos pra elementos simbólicos e de representações que carregam dimensões subjetivas (e aqui estamos utilizando a canção em sua ligação com o texto bíblico), estamos diante de algo cujos significados estão sempre em disputa, em constante construção e negociação (CAUNE, 2014; THOMPSON, 1995). Ou seja, a cultura é um campo de tensões cujas narrativas que o atravessam estão permanentemente em embates e (re)interpretações. Se num dia determinadas subjetividades religiosas orientam seus fiéis ao jejum e oração (por exemplo) para se vencer uma guerra que é compreendida como espiritual, num outro momento, por mudanças circunstanciais diversas, essa guerra pode ser percebida de outra maneira e isso modifica o tipo de “armas” necessárias para vencê-la. Vale lembrar que num país que possui um grande histórico de analfabetismo, principalmente o funcional, isto é, onde o indivíduo é capaz de ler uma frase, mas não consegue interpretar e dar sentido ao texto, as armadilhas na decodificação de determinadas mensagens são ainda mais problemáticas.

Nesse sentido, observamos uma série de acontecimentos que denunciam os caminhos perigosos e perversos pelos quais determinadas subjetividades são realocadas, muitas vezes intencionalmente, dentro de certos contextos e circunstâncias. É o caso da aproximação da igreja evangélica com a ideologia militar, que demonstra como os recursos subjetivos do mundo espiritual parecem ter encontrado substâncias materiais, de modo que as armas para a vitória passam a ser identificadas não mais somente numa oração que conecta o indivíduo com Deus, mas no aparato militar-armamentista que permite o uso da força para intimidar ou aniquilar os inimigos, impondo ao mundo uma verdade supostamente única e legítima. Assim tem-se operado uma estetização da guerra pelas igrejas neopentecostais, tendo a música gospel um papel determinante nesse processo. É no propósito de aprofundar uma discussão teórica sobre este problema que caminho na análise a seguir.


O fascismo e a estetização da guerra pelas igrejas neopentecostais

Interpretar a ideologia é explicitar a conexão entre o sentido mobilizado pelas formas simbólicas e as relações de dominação que esse sentido mantém.
(John B. Thompson)

Tratando-se de uma breve reflexão que envolve o contexto brasileiro, não entrarei na questão da guerra entre Israel e Palestina, que corresponde direta ou indiretamente a este tema, mas vale mencionar o apoio expressivo da comunidade cristã brasileira ao Estado de Israel nesse conflito que tem como resultado o genocídio de milhares de palestinos. De todo modo, as aproximações entre as aspirações conservadoras cristãs (envolvendo toda uma ambientação com aspectos semânticos e imagéticos do aparato bélico e militar) e a política institucional, manifestam, como vimos, um tipo de estetização da guerra, o que conduz nossa reflexão a considerar possíveis traços de ideologia fascista se formando na cultura gospel. Ao tratar deste fenômeno em que o fascismo articula uma estetização da política, o filósofo Walter Benjamin afirma que todos os esforços empreendidos nesse sentido “culminam em um ponto. Esse ponto é a guerra” (BENJAMIN, 2017, p. 97).

Com o fascismo, segundo Benjamin, a autoalienação da humanidade atingiu tal nível “que se lhe torna possível vivenciar a sua própria aniquilação como um deleite estético de primeira ordem. Assim configura-se a estetização da política operada pelo fascismo” (BENJAMIN, 2017, p. 99). Trazendo mecanismos do pensamento do filósofo para o contexto aqui tratado, são inúmeros os exemplos que poderiam ser citados de “deleites estéticos” causados pela autoalienação dos evangélicos brasileiros. Para não fugir ao recorte do trabalho menciono uma versão infantil (por Vaneyse)[5] da música aqui analisada, Nosso general, onde o clipe em animação exibe crianças fardadas e sorridentes portando metralhadoras, tanques, entre outros recursos do exército. A quantidade de conteúdos infantis, inclusive, que relaciona crianças com o armamento militar, seja em pregações, dinâmicas ou música gospel, e que são facilmente encontrados no Youtube, impressiona e carece de maior atenção.

Mas para compreender como se deu o atravessamento desse discurso odioso e violento (como todo discurso fascista) dentro de uma comunidade historicamente reconhecida por pregar tópicos como amor ao próximo, compaixão, perdão e paz, falta-nos, ainda, um dispositivo teórico. Pensando esse cenário em que milhares de fiéis são orientados por suas lideranças numa determinada direção política (a saber, à extrema direita), através de todo um aparato subjetivo que envolve a interpretação do texto bíblico ou, como vimos aqui, as canções (com a música gospel), é válido recorrer ao importante estudo em que Freud analisa o funcionamento das massas e que muito contribui aos propósitos deste artigo. Me refiro ao texto Psicologia das massas e análise do eu (publicado em 1921), em que Freud retoma um estudo iniciado por Gustave Le Bon (2018), no final do século 19, e empenha importantes avanços à discussão. Iniciemos com a seguinte citação de Le Bon, utilizada por Freud nas primeiras partes do texto:

Inclinada a todos os extremos, a massa também é excitada apenas por estímulos desmedidos. Quem quiser influir sobre ela, não necessita medir logicamente os argumentos; deve pintar com imagens mais fortes, exagerar e sempre repetir a mesma coisa.

Como a massa não tem dúvidas quanto ao que é verdadeiro ou falso, e tem consciência da sua enorme força, ela é, ao mesmo tempo, intolerante e crente na autoridade. Ela respeita a força, e deixa-se influenciar apenas moderadamente pela bondade, que para ela é uma espécie de fraqueza. O que ela exige de seus heróis é fortaleza, até mesmo violência. Quer ser dominada e oprimida, quer temer os seus senhores. No fundo inteiramente conservadora, tem profunda aversão a todos os progressos e inovações, e ilimitada reverência pela tradição (LE BON apud FREUD, 2011, p. 27).

No trecho acima, Freud está partindo de Le Bon para introduzir o tema da psicologia das multidões (ou das massas, como passou a ser mais utilizado) com o que seria o “estado da arte” dessa discussão naquele período. Os conceitos de Le Bon já traziam importantes pontos para o tema, identificando um estado regressivo das massas que induziam a uma espécie de esvaziamento do indivíduo em suas capacidades lógicas, racionais e psíquicas. Mas ao avançar nos estudos sobre as massas, Freud identifica a necessidade de investigar mais a fundo a relação entre uma massa e o líder. Nesse propósito, o pai da psicanálise aborda dois exemplos importantes de “massas bastante organizadas, duradouras e artificiais”, a saber, igreja e exército (FREUD, 2011, p. 46): “Igreja e Exército são massas artificiais, isto é, uma certa coação externa é empregada para evitar sua dissolução e impedir mudanças na sua estrutura” (FREUD, 2011, p. 46). Na igreja – e aqui Freud toma como modelo a igreja católica – “prevalece, tal como no exército, por mais diferentes que sejam de resto, a mesma simulação (ilusão) de que há um chefe supremo” (na igreja, Cristo, no exército, o general) “que ama com o mesmo amor todos os indivíduos da massa. Tudo depende dessa ilusão; se ela fosse abandonada, imediatamente se dissolveriam tanto a Igreja como o Exército” (p. 47). Essas lideranças, que dentro de determinadas hierarquias podem se estender à figura de papa, bispo, padre, pastor, apóstolo, coronel, general etc., possuem ainda um caráter patriarcal, funcionando como um “substituto paterno” para os indivíduos na massa.

O texto de Freud não poderia ser mais claro e preciso nessa abordagem. Vejamos um fato bastante ilustrativo da ideia aqui defendida, onde busco demonstrar que as aproximações subjetivas entre a cultura gospel e o militarismo têm manifestado propósitos fascistas na política brasileira, e que pode ser, em vários níveis, sustentada pelo argumento de Freud. Trata-se de um projeto chamado Exército de Cristo[6], da Igreja Universal, que tem em seu site oficial uma foto (ilustrativa) de soldados portando metralhadoras e o seguinte texto:

Um exército se caracteriza pelas normas rígidas de disciplina, de obe­diência incondicional, de ordem, de respeito, hierarquia e submissão. Quando um jovem vai ao exército já sabe de antemão que tem de se integrar à disciplina rígida contida ali. Em um exército, todos, sem exceção, têm de se submeter às regras.

Na guerra, se o sargento na frente de batalha ordenar que seus soldados executem uma determinada missão e um deles desobedecer, toda tropa é colocada em risco. A vitória pode escorrer das mãos como água. O exército exige uma disciplina por conta do objetivo, que é vencer as suas batalhas. No exército de Deus não é diferente. Todos têm que ter o mesmo espírito; todos têm que ter o mesmo caráter; todos têm que ter o caráter da justiça e da fé; do contrário, o Senhor dos Exércitos não pode contar com eles.

Ele lidera aqueles – e somente aqueles – que vivem dentro de uma dis­ciplina; uma disciplina espiritual; uma disciplina de obediência, de sub­missão; uma disciplina tal que não deixa dúvida de que aquele soldado é verdadeiramente um soldado de Deus que faz a vontade dEle.

(...) Quem está disposto a ser forte, corajoso, assumir seu papel nessa batalha, colocan­do em prática o que tem aprendido? (EXÉRCITO DE CRISTO, 2016)[7].

As ênfases na obediência incondicional e submissão aos comandos da liderança (geralmente de ordem patriarcal) nos dão “a vantagem da nitidez” – para utilizar a expressão de Benjamin ao citar trecho do manifesto futurista de Marinetti, que defende haver beleza na guerra (BENJAMIN, 2017, p. 98). Como argumenta Adorno em seu texto Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista, “um dos princípios básicos da liderança fascista é manter a energia libidinal primária em um nível inconsciente, de modo a desviar suas manifestações de uma forma adequada a fins políticos”[8] (ADORNO, 2015, p. 163). É na esteira desse dispositivo psicológico (muito bem tratado por Freud) que os líderes evangélicos parecem ter encontrado espaços para avançar em seus propósitos de poder político, com apoio expressivo de seus rebanhos (massas), estando esses propósitos alinhados ou não com a ética e a moral cristã.

Não é por acaso que temos presenciado constantemente cenas (que valem destaque) como: a descoberta, pela Polícia Federal, de arsenal de submetralhadoras com silenciadores em sede da Igreja Universal[9] – a mesma do Exército de Cristo; a integração harmoniosa da bancada da bíblica com a bancada da bala no congresso brasileiro[10]; o apoio expressivo da comunidade evangélica ao ex-presidente Jair Bolsonaro[11], que militarizou o governo federal[12] e realizou decretos que flexibilizaram a posse e (ou) porte de armas de fogo por civis[13]; e, retomando e destacando o lugar da música em toda essa discussão, relembro um episódio em que o então secretário especial de Cultura do governo Bolsonaro, Mario Frias – que andava armado pelos corredores da secretaria –, barrou um importante festival de Jazz na Bahia, por questões ideológicas, justificando que a finalidade da música deve ser louvar à Deus[14].


Considerações finais

O crescimento das igrejas neopentecostais no Brasil, bem como sua consequente ampliação de poder na esfera política, vem sendo observado e discutido por pesquisadores de diferentes áreas. Neste estudo optei por não dialogar diretamente com conceitos e dados trazidos por estes trabalhos, uma vez que busquei apenas acrescentar alguns tópicos em toda essa discussão, principalmente por observar que a música gospel acaba sendo pouco considerada nesse processo de aproximação entre as igrejas neopentecostais e o discurso fascista da extrema direita. Assim, tentei demonstrar como a música gospel tem atuado no campo subjetivo das massas cristãs, difundindo noções que têm servido de base e de munição à extrema direita.

A circulação de ideias bíblicas que aludem a batalhas espirituais na música gospel (envolvendo todo um campo semântico ligado a referências militares com termos como senhor dos exércitos, general, soldados, armas etc.), têm passado por um processo de decodificação temerário e não sem articulação (mal) intencionada de líderes evangélicos, como vimos a partir do conceito de psicologia das massas, de Freud. Nesse cenário, a lógica do conflito transcende o metafísico. Ou seja, a partir do momento em que os ideais e interesses políticos da igreja encontram correspondência e amparo no discurso da extrema direita (onde somam-se grandes forças políticas), os inimigos da igreja não são mais necessariamente elementos abstratos (pecado, mal, diabo etc.), mas qualquer pessoa ou grupo que se associe aos ideais de esquerda, como políticos, militância, artistas, professores, intelectuais, cientistas, ambientalistas, defensores de direitos humanos, ou praticantes de religiões não cristãs, devendo esses ser combatidos.

Desse modo, ao longo deste estudo não foi necessário realizar nenhum tipo de esforço para relacionar igreja, exército, armas, estetização da guerra e fascismo, pois tal aproximação, na verdade, é feita pela própria bíblia e louvada, a todo instante, pelos cristãos (sobretudo neopentecostais) através de suas músicas e de suas ações políticas. Apenas trouxe elementos visivelmente dispostos nas igrejas e na política brasileira, colocando-os sob uma análise cultural e política. Reforço, por fim, que a pretensão deste texto não foi a de defender uma tese fechada em si mesma, mas de ampliar as frestas desse tema que tem exigido atenção das análises contemporâneas sobre a política brasileira pelas ciências humanas e sociais.

Nesse terreno em que se expandem as igrejas neopentecostais, alastram-se os discursos e a força política da extrema direita. Conhecidos também por esbravejar contra uma suposta “doutrinação ideológica” da esquerda nas escolas, têm os evangélicos submetido suas crianças às doutrinações de ideologia militar nas igrejas, onde marcham fardados e entoam gritos de guerra com o pretexto de tornarem-se “soldados de Cristo”. Os milhares de conteúdos de clipes musicais, congressos infantis e pregações voltados a esse propósito (disponíveis no Youtube), não demonstram pudor ao representarem (de algum modo) crianças com armas, granadas, tanques, munições e demais aparatos bélicos. Tem-se aí, onde parece haver um “deleite estético” (para relembrar as contribuições de Benjamin), um processo de estetização da guerra pelas igrejas neopentecostais. Nesse encadeamento cumpre a música gospel o seu papel na construção de subjetividades que orientam as massas cristãs numa concepção simbólica de teor militar e fascista.




Notas:

[1] Disponível em: https://harpacristaonline.com.br. Acessado em: 16 nov. 2023.

[2] Disponível em: https://youtu.be/DFksxUVOVD0?si=6glvMdFxKQYVmTAy. Acessado em: 16 nov. 2023.

[3] Disponível em: https://youtu.be/plkSnTFiZqw?si=mk66XSy9ILUP0hUH. Acesso em: 16 nov. 2023.

[4] Disponível em: https://youtu.be/r3tZqfPL5Mk?si=0z7MYkS65ecif7CI. Acessado em: 16 nov. 2023.

[5] Disponível em: https://youtu.be/3kpOvbj7L7c?si=2N4z0ztzFiZ7be_S. Acessado em: 16 nov. 2023.

[6] Disponível em: https://www.universal.org/noticias/post/o-exercito-de-cristo/. Acessado em: 16 nov. 2023.

[7] Referência eletrônica. Ausência de nº de página.

[8] Para Freud, o vínculo que unifica os indivíduos em uma massa ocorre através de uma ligação libidinal (Cf. FREUD, 2011).

[9] Disponível em: https://www.estadao.com.br/brasil/pf-apreende-armas-em-templo-da-universal-no-pa/. Acessado em: 16 nov. 2023.

[10] Disponível em: https://exame.com/brasil/biblia-boi-e-bala-um-raio-x-das-bancadas-da-camara/. Acessado em: 16 nov. 2023.

[11] Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/cronicas-de-um-estado-laico/o-apoio-dos-evangelicos-a-bolsonaro-em-2022/. Acessado em: 16 nov. 2023.

[12] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/02/entenda-a-militarizacao-do-governo-bolsonaro-e-as-ameacas-que-isso-representa.shtml. Acessado em: 16 nov. 2023.

[13] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/02/12/bolsonaro-publica-decretos-que-alteram-regulamentos-sobre-armas-no-brasil.htm. Acessado em: 16 nov. 2023.

[14] Disponível em: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2021/07/governo-justifica-falta-de-apoio-a-festival-de-jazz-objetivo-da-musica-deve-ser-glorificar-deus.html. Acessado em: 16 nov. 2023.

Bibliografia

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CAUNE, Jean. Cultura e comunicação: convergências teóricas e lugares de mediação. São Paulo: Editora Unesp, p. 1904-2004, 2014.

FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920 – 1923). Tradução Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, RJ : Vozes, 1995.

Sites consultados

Bíblia, boi e bala: um raio-x das bancadas da Câmara
https://exame.com/brasil/biblia-boi-e-bala-um-raio-x-das-bancadas-da-camara/
Último acesso em 16 de novembro de 2023.

Bolsonaro publica decretos que flexibilizam regras para uso de armas
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/02/12/bolsonaro-publica-decretos-que-alteram-regulamentos-sobre-armas-no-brasil.htm
Último acesso em 16 de novembro de 2023.

Entenda a militarização do Governo Bolsonaro e as ameaças que isso representa
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/02/entenda-a-militarizacao-do-governo-bolsonaro-e-as-ameacas-que-isso-representa.shtml
Último acesso em 16 de novembro de 2023.

Governo justifica falta de apoio a Festival de Jazz: “Objetivo da música deve ser glorificar Deus”
https://www.pragmatismopolitico.com.br/2021/07/governo-justifica-falta-de-apoio-a-festival-de-jazz-objetivo-da-musica-deve-ser-glorificar-deus.html
Último acesso em 16 de novembro de 2023.

Harpa Cristã
https://harpacristaonline.com.br
Último acesso em 16 de novembro de 2023.

Hino 305 – Harpa Cristã - Campeões da luz
https://www.youtube.com/watch?v=DFksxUVOVD0
Último acesso em 16 de novembro de 2023.

Nossas armas – Renascer Praise
https://youtu.be/r3tZqfPL5Mk?si=0z7MYkS65ecif7CI
Último acesso em 16 de novembro de 2023.

Nosso General – Adhemar de Campos
https://youtu.be/plkSnTFiZqw?si=krGkNd8b92sx9YPh
 Último acesso em 16 de novembro de 2023.

Nosso General (Cover) - Vaneyse
https://youtu.be/3kpOvbj7L7c?si=2N4z0ztzFiZ7be_S
Último acesso em 16 de novembro de 2023.

O apoio dos evangélicos a Bolsonaro em 2022
https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/cronicas-de-um-estado-laico/o-apoio-dos-evangelicos-a-bolsonaro-em-2022/
Último acesso em 16 de novembro de 2023.

O exército de Cristo – Universal
https://www.universal.org/noticias/post/o-exercito-de-cristo/
Último acesso em 16 de novembro de 2023.

PF apreende armas em templo da Universal no PA
https://www.estadao.com.br/brasil/pf-apreende-armas-em-templo-da-universal-no-pa/
Último acesso em 16 de novembro de 2023.