O abandono da pintura e a expansão da expressão artística

Por Vitor Vedovato

Marcel Duchamp talvez tenha sido um dos artistas mais sui-generis das últimas décadas. Sua personalidade é sempre trazida como serena, educada, porém irônica e de uma grande sagacidade intelectual. Questionador quanto ao que envolvia as importâncias científicas e filosóficas da existência e da arte, Duchamp expressou em seus trabalhos tais indagações de forma notável.  Aristocrática e sedutora, sua persona de forte espírito dândi sempre viveu – ou assim o colocam suas biografias – na camada mais abastada da sociedade, “completamente fora dos movimentos de ideais sociais e políticas” (CABANNE, 1987, p.84). Portanto, o olhar para Marcel Duchamp pede um prisma no qual essas preocupações são desvanecidas. Não obstante, deve-se considerar que as reverberações de suas ações e inovações foram vastas e atingiram as mais diversas expressões artísticas, inclusive as de preocupações sociais e políticas, como aponta Cildo Meireles:

 

Aí me interessava estabelecer uma discussão no interior da história da arte com o que eu considerava que era a coisa mais importante que já havia acontecido até então, os readymades do [Marcel] Duchamp. Não me interessava repetir aquilo. O que acontece é o seguinte, no readymade, você desloca alguma coisa do mundo industrial para o espaço da arte. E, na verdade, a intenção de Inserções em circuitos ideológicos era exatamente o contrário: você pegar uma coisa que saísse do indivíduo e conseguir que isso tivesse uma circulação muito grande [...]. Portanto, dizia respeito a outros fatores que eram sócio-políticos, censura, controle de informação. (RIVITTI, 2007, p.74)

 

Assim, as inovações no campo artístico realizadas por Duchamp – como a antiarte e o princípio da arte conceitual – concebem uma expansão no âmbito e nos meios das realizações artísticas que serão utilizadas pelos mais diversos artistas e temáticas. Em síntese, Duchamp estabeleceu a ideia como objeto final da arte. Entender o processo de abandono da pintura de Duchamp é entender a transição de um modelo restrito e tradicional para um novo modo de fazer e entender arte. Esse abandono é aqui analisado à luz de três principais fatores, conforme colocado por Calvin Tomkins, biógrafo de Duchamp: a fuga da tradição, a influência de Raymond Roussel, e a mudança para os Estados Unidos (TOMKINS, 2005, p.134). É, portanto, expondo os fatores apontados por Tomkins que se busca elucidar o processo de abandono da pintura de Duchamp – figurada inicialmente por suas pinturas muniquenses, em especial, Nu descendo uma escada – até libertação final em Noiva despida por seus celibatários, mesmo ou Grande vidro.



A DESORDEM, A MÁQUINA E A POESIA ROUSSELIANA

 

A gaiola de vidro continha um imenso instrumento musical que incluía construções de cobre, cordas e arcos circulares, plugs mecânicos de todos os tipos e um requintado acionador para os tambores (ROUSSEL. 1973, p.350).

 

O ano de 1911 foi de grande importância para Duchamp. Ainda jovem, com 24 anos e sem grande reconhecimento no meio artístico, mesmo que estabelecido dentro dos círculos sociais de artistas como o Grupo de Puteaux, o pintor ansiava por estabelecer sua própria expressividade. Intercalando a boemia e a reclusão, foi nesse ano, na companhia de Picabia e o casal Apollinaire, que Duchamp assistiu a uma montagem da peça Impressions d’Afrique em Paris. A montagem teatral, que causou enorme desgosto e revolta da plateia geral, extasiou o pintor francês, que sempre tomaria essa noite como uma das mais memoráveis tanto na concepção do Grande Vidro – “Fundamentalmente foi Roussel o responsável pelo meu vidro” (TOMKINS, 2005, p.107) – como no início de sua mudança no processo de criação artística: 


Foi a partir de suas “Impressions d’Afrique” que pude traçar o plano geral da minha obra. Essa peça, que vi com Apollinaire, me ajudou muito no que toca a certo aspecto da minha expressão. Vi logo que podia usar Roussel como fonte de inspiração. Senti que, como pintor, era muito melhor ser influenciado por um escritor do que por outro pintor (TOMKINS, 2005, p.107) 

 

A importância de Roussel para a eclosão da expressão artística de Duchamp é sublinhada por Rosalind Krauss ao demonstrar como os readymades são, por essência, desdobramentos do pensamento rousseliano dentro da construção duchampiana: 

Os readymades tornaram-se dessa forma uma parte do projeto de Duchamp para fazer determinados tipos de movimentos estratégicos – movimentos que iriam levantar questões sobre a natureza exata do trabalho na expressão “trabalho de arte”. Evidentemente, uma das respostas sugeridas pelos readymades é a de que um trabalho de arte pode não ser um objeto físico, mas sim uma questão, e que seria possível reconsiderar a criação artística, portanto, como assumindo uma forma perfeitamente legítima no ato especulativo de formular questões. Ao usar o readymade para indagar acerca da natureza do “trabalho” artístico, Duchamp gravitava em direção ao extremo rousseliano expresso em Impressões da África (KRAUSS, 2007, p.91) 

 

O excêntrico escritor francês – ainda que pouco conhecido pelo grande público – tornou-se importante referência sobre o rompimento da representação mimética dentro da literatura. Esse rompimento de imitação da realidade traz uma expansão da possibilidade de expressão, pouco comum no período de 1910, ano em que Impressions foi escrita. É ao encontro dessa assertiva que Julia Kristeva, filósofa e crítica literária, assinala: 


Acrobacias impossíveis; tiros milagrosos; uma criança utiliza um pássaro como avião; um verme toca cítara; Ludovic tem voz quádrupla; Legoualch tira música de sua tíbia; um cego recupera a visão; um tear tece auroras; um amnésico recupera a memória.... As Impressions acumulam o fantástico e forçam-nos a aceitá-lo como verossímil (KRISTEVA, 1974, p.135) 

 

O aprofundamento na relação Duchamp-Roussel comprova diversas convergências entre esses artistas. O pintor francês “começara a produzir, como ‘trabalhos’, elaborados jogos de palavras em que as frases eram construídas com a repetição e a inversão de um pequeno número de fonemas, criando as frases homofônicas que Duchamp chamava Rrose Sélavy” (KRAUSS, 2007, p. 91). Essas composições literárias realizadas por Duchamp na persona de Rrose Sélavy são decorrentes dos poemas rousselianos que se utilizam, entre tantos outros recursos formais, do jogo de inversões de palavras (CABANNE, 1987, p.68). 

Da relação desses dois artistas, pode-se analisar a série Anémic Cinéma. Neste trabalho, Duchamp traz em vídeo o funcionamento de seus rotoreliefs (figura 1), desenhos de círculos concêntricos que giram e provocam ilusão de ótica de tridimensionalidade, e também alguns poemas de Sélavy (figura 2), escritos em círculos que se movimentam e se repetem nos dois sentidos do movimento (horário e anti-horário).

Fig. 1 - Rotorelief. Marcel Duchamp, 1935.

 Litogravura. 20cm diâmetro. Disponivel em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/371722 acessado em 02 jun 2019

Fig. 2 - Anémic Cinéma. Marcel Duchamp, 1935.

Avez-vous déjà mis la moelle de l’épée dans le poêle de l’aimée?

Litogravura. 20cm diâmetro. Disponivel em: https://www.revistapunkto.com/2011/02/re-anemic-cinema-marcel-duchamp.html acessado em 28 jul 2019.

A expressão rousseliana é apresentada aqui através do jogo poético e, ludicamente, pela utilização de aparatos tanto na movimentação dos rotoreliefs quanto na apresentação em vídeo. 

Através da persona Rrose Sélavy, Duchamp apresenta poemas que exercitam o jogo de palavras através da substituição de sílabas ou termos criando composições nonsense e trocadilhos de teor sexual como em “Avez-vous déjà mis la moelle de l’épée dans le poêle de l’aimée?”, onde o artista brinca com inversão das sílabas de moelle/poêle e l’épée/l’aimée para criar a frase “você já colocou a medula da espada no forno da amada?”.[1] Os trocadilhos utilizados por Rrose Sélavy demonstram grande influência dos trocadilhos utilizados por Raymond Roussel em seus escritos.

Ademais, ao apresentar os poemas que se movimentam de forma cíclica e contínua, a obra traz uma decomposição no conceito de início e fim que implica tanto a participação do espectador – que busca intelectualmente entender os poemas – quanto a relação de infinito e cíclico. Sendo essa última forte característica das obras de Roussel, que, em Impressions, inicia a obra com a frase Les lettres du blanc sur les bandes du vieux billard[2] e encerra Les lettres du blanc sur les bandes du vieux pillard[3]. A explicação dada por Roussel elucida essa composição:


Escolhi duas palavras quase semelhantes (ao modo dos metagramas). Por exemplo, bilhar e pilhar (saqueador). Em seguida, acrescentava palavras idênticas, mas tomadas em sentidos diferentes, e obtinha com elas frases quase idênticas (ROUSSEL, 1995, p. 11)


Assim, Anémic cinema pode ser considerada uma ode à mecanização, à poesia, à imaginação e à circularidade, características da obra de Roussel. 

Porém, “o jogo de Duchamp é mais complexo [do que o de Roussel] porque a combinação não é só verbal, mas plástica e mental” (PAZ, 1990, p.16). E é na composição da obra Grande Vidro que Duchamp exprime excepcionalmente sua relação com Roussel. A noiva despida pelos seus celibatários, mesmo ou Grande Vidro (figura 3) apresenta-se como uma das obras mais complexas e repletas de simbologias entre as realizadas por Duchamp. Essa obra que “já não era uma pintura. Era uma pintura sobre vidro, se você quiser, mas não era uma pintura” (CABANNE, 1987, p.116) apresenta sinteticamente diversos elementos da relação Duchamp-Roussel. 

Fig.3 - A noiva despida por seus celibatários, mesmo ou (Grande vidro). Marcel Duchamp, 1923. Materiais diversos. 277,5x177,8x8,6cm. Disponível em: http://www.revistacodigo.com/arte/cerith-wyn-evans-tamayo/ Acessado em 28 jul 2019.

Com início de projeto e rascunhos realizados durante sua estadia em Munique, 1912, e efetivo início de realização a partir de 1915, nos Estados Unidos, a obra A noiva despida pelos seus celibatários, mesmo é composta por duas grandes peças de vidro montadas em uma armação de ferro medindo 272,5 x 175,8 cm. Será, inclusive, por conta dessa colossal e distinta materialidade que a obra ficará conhecida como Grande Vidro. A inovadora – para o período – materialidade desse suporte será explorada através da utilização de outros materiais igualmente inovadores como fios e tintas metálicas. Com financiamento de seu amigo e patrono Walter Arensberg[1], o qual será proprietário da obra após sua conclusão, o Grande Vidro é dado como definitivamente não-terminado por Duchamp em 1923.

Porém, apesar da “sublime” visão causada pela materialidade da obra é na simbologia e conceitualização da composição que se concentra, talvez, a maior potência inovadora e de complexidade artística que podem ser relacionadas ao pensamento rousseliano. As formas representadas em Grande Vidro em diversos tons de ocre metálico são imagens compostas tanto de trabalhos anteriores de Duchamp, como Moedor de Chocolate e Três Stoppages, quanto de novos objetos e personagens-objetos. Em síntese, na concepção do criador, Grande Vidro demonstra, através de sua composição estética e imagética, um ritual de sedução, relação de poder e paradoxal impossibilidade de concretização de um jogo sedutor e erótico entre a noiva e seus celibatários-súditos.


A Noiva despida por seus celibatários, mesmo é uma das obras mais herméticas do nosso século. Distingue-se da maioria dos textos modernos – por que este quadro é um texto – pelo fato que o autor nos deu uma chave: as notas da Caixa Verde. Já disse que é uma chave incompleta, como o próprio Grande Vidro; ademais, as notas não têm outra ordem que a cronológica e são, a seu modo, outro quebra-cabeças, signos dispersos que devemos reagrupar e decifrar. A Noiva... e a Caixa Verde constituem um sistema de espelhos que intercambiam reflexos; cada um deles ilumina e retifica os outros (PAZ, 1990, p.29)

 

Conforme colocado por Duchamp, “as ideias do Vidro eram mais importantes do que a própria percepção visual” (TOMKINS, 2005, p.328) e “impossível de ser analisado pela lógica” (TOMKINS, 2005, p.16). É nessa fantasia nonsense repleta de maquinários-aparatos que Duchamp instaura uma simbologia rousseliana a sua maneira. As questões dos maquinários-aparatos fantasiosos que interagem com figuras humanas caricatas na realização de rituais nonsense são a síntese da construção literária de Roussel:

 

O conjunto era composto por uma espécie de pedra de moinho que, impulsionado por um pedal, movimenta todo um sistema de rodas, bielas, elevadores e molas que formavam um nó metálico inextricável: em um dos lados um braço articulado apareceu, e terminava em uma mão armada de um florete (ROUSSEL, 1973, p.35) 

 

Também deve-se apontar que os títulos são de extrema importância dentro da composição das obras de Duchamp. Fato que se faz excepcionalmente presente em Noiva despida por seus celibatários, mesmo. Aqui o termo mesmo não se refere a nenhum dos personagens do título. “É então um advérbio, na sua mais bela expressão de advérbio. Não tem nenhum sentido” (Marcel Duchamp apud CABANNE, 1987, p.68) explica o artista durante uma entrevista, ao que ele adiciona: “Esse anti-sentido me interessava muito no plano poético, do ponto de vista da frase” (Marcel Duchamp apud CABANNE, 1987, p.68).

É à luz desses levantamentos que se nota as correlações apresentadas nas duas criações e como a apresentação literária de Grande Vidro apresenta uma forte influência, referência e ode à Raymond Roussel. 

 

 

 

A FUGA DA TRADIÇÃO, O EXÍLIO EM MUNIQUE E O ACOLHIMENTO PELOS E.U.A

  

Ninguém é profeta em sua terra[2]

                                                         

 

A primeira década do século XX é repleta de importantes acontecimentos que determinaram mudanças sociais e políticas que influenciaram o mundo artístico, especialmente no ocidente. Desses a primeira guerra mundial foi marco histórico na efetiva estabilização dos Estados Unidos como grande centro de poderio econômico e político mundial. Evento que formaria um eixo cultural e artístico entre Europa e Estados Unidos, velho e novo, uma arte estabelecida e uma arte a ser desenvolvida.

 

Nova York em 1915 era uma cidade moderna de uma maneira que Paris nunca seria. Duchamp precisava da liberdade e aprovação de tal modernidade. Esse contexto e essa cidade deram a Duchamp a licença para explorar dois tipos psicológicos, o dândi e a femme fatale. Caracterizar Duchamp através desses dois tipos essencialmente europeus do século XIX aponta para a surpreendente justaposição de dois mundos, antigos e novos, quando Duchamp e o moderno Estados Unidos se abraçaram tão calorosamente (ROTH, 1998, p.19).

                                  

A ideia de liberdade e aprovação, colocada por Roth, é melhor compreendida quando analisada a origem do artista. Proveniente de família abastada, Marcel Duchamp terá como primeiros professores de pintura seus irmãos mais velhos, Jacques Villon e Raymond Duchamp-Villon. Os mais de dez anos de diferença entre o jovem Marcel e seus irmãos colocavam-no sob forte influência de Jacques e Raymond não apenas na produção artística, mas também em suas relações sociais. Vide a participação de Marcel nos encontros do Grupo Puteaux realizados, inicialmente, na residência dos Duchamp. O artista, que desde o início de sua produção pictórica em 1905 mantinha-se alinhado com as vanguardas francesas, pouco ou nada se expressou fora delas. Isto pois Duchamp era fortemente influenciado, até 1912, pelo Grupo Puteaux, grupo cubista de Gleizes, Metzinger, os irmãos Duchamp, entre outros importantes artistas franceses. Esse grupo mantinha sua principal “rivalidade” dentro da França com o grupo cubista da galeria Kahnweiler, reconhecida mantenedora e patrocinadora de Braque e Picasso. Essa peleja intelectual e mercadológica entre as duas vertentes cubistas, bem como a reduzida facilidade de acesso a informações e imagem existente no início do século XX e seu posicionamento com artistas franceses dentro da então capital artística mundial – Paris – limitavam os artistas a se manterem focados nos debates internos à França.

Apesar da sua participação no Grupo de Puteaux, Duchamp se coloca à margem desses grupos. Segundo ele, “queria inventar ou encontrar o próprio caminho em vez de ser simples intérprete de uma teoria” (TOMKINS, 2005, p.57), e é essa determinação do artista que irá levá-lo a se manter inicialmente junto às vanguardas artísticas, mas paradoxalmente terminará por também afastá-lo das mesmas.

O ano de 1912 assinala para Duchamp a superação das tradições vanguardistas, tanto em relação ao tema quanto ao estilo pictórico. Tendo exaurido as possibilidades de renovação nos limites da pintura sobre tela tradicional, inicia a conquista de um conceito de arte absolutamente novo, procurando “colocar, uma vez mais, a pintura a serviço da mente” (SCHWARZ, 1997, p.70).                      

 

É durante essa viagem que o artista executa suas mais importantes e também últimas pinturas. A expressão “últimas pinturas” aqui é realizada sob a ótica da intenção do artista de se considerar como pintor. Duchamp irá realizar, posteriormente, outras pinturas, como Moedor de chocolate, porém essas não seriam mais destinadas ao circuito artístico e teriam por finalidade serem estudos para a obra O Grande Vidro.

Durante essa estadia alemã Marcel visitará muitos museus, principalmente o Alte Pinakothek onde irá revisitar diversos mestres e conhecer novos. Dessa forma, sua estadia pode ser tomada como a um retiro pessoal onde ele pôde focar na produção de suas pinturas sem a interferência de seu círculo social e artístico. Ainda que pouca atenção seja concedida para a estadia em Munique, por diversas razões, Duchamp regressará à França com sua produção pictórica mais significativa, o que para alguns estudiosos como de Duve, determinam como a perfeita síntese do pensamento cubista pós-cézanniano.

 

        Cézanne demanda dos pintores depois dele, que seriam nutridos pela "visão do mundo" dele, que eles mudem sua visão mudando a pintura. Os cubistas ortodoxos não compreendiam realmente que: o fato de que a pintura deles era afetada pela força irreversível que sua própria situação histórica como pintores pós-cézannianos era imposta sobre eles , mas não teorizaram essa irreversibilidade. Eles abriram a era das "vanguardas históricas", mas em sua fidelidade regressiva ao classicismo cézanniano, revelam-se incapazes de levar em conta o que isso significa teoricamente. Foi essa contabilidade teórica que Duchamp realizou em Munique [...] (DUVE, 1991, p.82).

 

É nessa superação da lógica cézanniana que Duchamp revela sua preocupação com a inovação como caráter de suas ações artísticas e da superação do retiniano. Essa preocupação que por fim tomará a forma em suas ações de antiarte – como nos readymades – apresenta-se, nesse momento, na preocupação na superação do caráter apenas retiniano da arte. Através do isolamento social, Duchamp se aprofunda na pintura cubista a fim de ultrapassar o apenas formal, material (retiniano) que continuava a ser a principal preocupação do cubismo ortodoxo. O Grupo de Puteaux, por exemplo, que visava “salvaguardar ou reconstituir a autopresença e a unidade do sujeito clássico, ao preço de um ativo desmembramento do mundo dos objetos” (Duve, 1991, p.80). Mais importante, Duchamp entendia que a lição cézanniana demandava uma superação de seus antecessores: “a verdadeira herança teórica de Cézanne exigia um novo ‘assassinato do pai’ na pintura: já que Cézanne tinha que matar Poussin para segui-lo, seguir Cézanne significava matá-lo por sua vez” (DUVE, 1991, p.80). É, portanto, nessa passagem por Munique que Duchamp tomará para si sua produção e que sua linguagem pessoal começará a tomar forma. Esse período encerra a divisão da pintura e o início do planejamento do Grande Vidro, que é uma inflexão em suas realizações artísticas.

Embora hoje admiradas, as pinturas muniquenses não foram bem quistas pelo circuito artístico francês de 1912. E em especial a obra Nu descendo uma escada (figura 4) e sua recepção negativa serão determinantes para o afastamento de Duchamp do grupo cubista e da Europa e sua consequente aproximação dos EUA. Ao regressar de Munique, Duchamp irá expor suas pinturas no Salão dos Independentes, sob curadoria do Grupo de Puteaux. Essa exposição, que representava ao grupo uma grande possibilidade de visibilidade, tornava-o também extremamente cauteloso quanto às obras apresentadas. Assim, em especial na voz de Gleizes, o Grupo Puteaux assume um certo conservadorismo e solicita a retirada ou mudança do título da obra Nu.


Ela [o abandono da pintura] veio de muitas coisas. Primeiro, o contato cotidiano com os artistas, o fato de viver com muitos artistas, de se falar com artistas me desagradava muito. Há um incidente em 1912 que me deixou meio “alterado”, se posso assim dizer; quando trouxe o Nu descendo uma escada para os Independentes, e me pediram para retirá-lo antes da abertura. No grupo mais avançado da época, havia pessoas com escrúpulos incríveis, eles mostravam uma espécie de medo! Pessoas como Gleizes, que era, mesmo assim, extremamente inteligente, acharam que o Nu não tinha a ver com a linha que já haviam previsto. O Cubismo não tinha ainda dois ou três anos de existência, e eles já tinham uma linha de conduta absolutamente clara, estabelecida, prevendo tudo que deveria acontecer. Eu achei muito ingênuo. Isso me esfriou a tal ponto que, como uma reação contra tal comportamento, da parte de artistas que eu acreditava livres, arrumei um emprego. Tornei-me bibliotecário na Biblioteca Saint-Geneviève em Paris. (CABANNE, 87, p.27)

Fig. 4 – Nu descendo uma escada. Marcel Duchamp,1912. Óleo s/ tela. 147x89,2cm.

Disponível em; https://goo.gl/CvAwCH .Acessado em 30 jul de 2019

Essa pintura, ainda que talvez não seja a de maior primor técnico e teórico expressado por Duchamp, dentro das pinturas muniquenses, é a mais conhecida e mais transgressora. O Nu encerra sinteticamente a estética empregada pelas demais peças muniquenses: uma paleta de pasteis ocres e terrosos – influência de Lucas Cranach, artista do século XVI, que Duchamp teria admirado em Munique –, a geometrização das formas humanoides-maquinaria, que denotam em sua simbologia a referência a Roussel e uma fuga temática do cubismo ortodoxo. O espaço das pinturas é harmoniosamente ocupado pelos desdobramentos dos movimentos das figuras no tempo. “Meu objetivo era uma representação estática do movimento, uma composição estática de indicações das posições diversas tomadas por uma forma em movimento” (DUCHAMP, apud TOMKINS, 2005, p.93). Os títulos das obras expandem a experiência simbólica criada pelas pinturas e colocam o espectador na intrincada busca de reconhecer as narrativas imagéticas de cada pintura. E será, acima de tudo, por conta do título que a obra Nu descendo uma escada se tornará tão famosa.


O Nu descendo uma escada chocava pelo que parecia ser um paroxismo, um frenesi do cubismo. O quadro foi tomado literalmente como uma piada sobre a ortodoxia cubista. Sua imagética se distanciava dos temas cubistas. Seu cubismo seria talvez um cubismo imaginário.

O título Nu descendo uma escada sugere uma situação imaginária. Nada menos compatível com um nu do que estar descendo uma escada. (FILHO, 1986, p.37).

  

Nu descendo uma escada provoca as regras de representação de um nu. “Nus, se masculinos, são vistos em poses heroicas [...] se femininos, eles aparecem reclinados, banhando-se. [...] Não se movem e seguramente não descem lances de escadas. Que tipo de piada estava Duchamp querendo contar?” (TOMKINS, 2005, p.94). Assim, ao negar a troca do título de sua obra e a retirada dessa da exposição, Duchamp demonstra dois pontos importantes: que o grupo cubista se tornara tão engessado quanto seus antecessores – não seguindo a proposta de Cézanne – e que ele não se colocaria sob a mercê de grupos.

É então que, em 1913, Nu descendo uma escada toma parte na exposição do Armory Show, nos Estados Unidos. Trazendo ao continente norte americano as vanguardas europeias, esta exposição tornou Marcel Duchamp uma celebridade instantânea. O seu nu causará grande furor no público e crítica colocando Duchamp à vista da grande mídia norte-americana. Sua obra e seu nome apareciam em grandes jornais.

Enquanto isso, na França, descontente com a recusa ao Nu por seus companheiros, Duchamp havia se colocado a trabalhar como bibliotecário e se distanciado da pintura. “Desde muito tempo, já antes da guerra mesmo, que essa ‘vida de artista’ em que estava metido me desagradava. Ela é o oposto daquilo que quero. Por isso, usei a biblioteca para tentar de algum jeito escapar dos artistas.” (DUCHAMP, apud TOMKINS, 2005, p.162).

A exposição do Armory Show “mudou o espírito em que os artistas trabalhavam, e também despertou a ideia de arte num país onde não havia muito interesse” (CABANNE, 1987, p.84) fazendo com que os grandes colecionadores passassem a visar a compra de quadros de americanos e de artistas estabelecidos nos Estados Unidos. A exposição ainda definiria uma importante ligação na vida pessoal, social e artística de Duchamp: Walter Arensberg. Esse rico poeta e colecionador de arte que tomará conhecimento da obra do francês no Armory Show e se tornará seu grande admirador, amigo e patrocinador. Comprador de grande parte da obra de Duchamp, Arensberg a reunirá no Museu da Filadélfia, que se tornará o museu duchampiano por excelência.

É, portanto, fugindo da classe artística francesa e da guerra que Duchamp parte para o que será um terreno mais favorável às suas experiências artísticas e a seu modo de vida. Refúgio para diversos europeus, os Estados Unidos se tornarão lar para Duchamp, que irá viver boa parte da sua vida em Nova York e terá concedida sua cidadania americana tardiamente, em 1954.


Realmente, em Nova York, não estava marginalizado, por causa do Nu descendo uma escada. Quando era apresentado, era sempre o senhor que pintou o Nu descendo uma escada, e as pessoas já sabiam com quem estavam falando. Em Paris, eu não conhecia ninguém. [...] Não tinha absolutamente a intenção de expor em público e realizar uma obra de pintor, ter uma vida de pintor. [Em Nova York] eu era considerado artista, e aceitava sê-lo. (CABANNE, 1987, p. 99-100).

 

Assim, a obra Nu abre as rotas de fuga tanto para o desvencilhar do grupo cubista de um renegado Marcel quanto para o escape da Europa para América e o abrir das portas para o reconhecido Duchamp e o início da produção Noiva despida por seus celibatários, mesmo, que se inicia em 1915, com o artista já estabelecido nos Estados Unidos.

Desde Munique que sua ambição maior era inventar novos meios de expressão que nada tivessem com pinturas “retinianas”, com teorias cubistas ou com qualquer método tradicional de fazer arte – de encontrar algo que nem ele nem ninguém tivesse pensado – e Nova York, com sua iconoclastia pretensiosa e irrefletida, parecia o lugar certo para fazê-lo. (TOMKINS, 2005, p.175).

A relação de Duchamp com os Estados Unidos é muito importante para o entendimento do processo de abandono da pintura pois será devido às suas relações sociais e pela ambientação inovadora e atrativa proporcionada por esse país que o artista inicia a expansão de sua própria linguagem artística. “Nova York apoiou, de várias formas, a expansão e elaboração de ideias anteriores de Duchamp” (ROTH, 1998, p.18).

Essa relação se mostrará igualmente importante posteriormente na influência que Duchamp exercerá na vanguarda de artistas estadunidenses dos anos 1950 a 1960.  Nesse período nos Estados Unidos, o macarthismo estabelecia uma luta anticomunista, incorporada por parte da população, enquanto uma paralisia frente a situação tomava os que não concordavam com essa perseguição. Como demonstrado pela escritora e pesquisadora Moira Roth, esse momento sócio-político afetava a geração de artistas como John Cage, Jasper Johns, Robert Rauschenberg, Merce Cunningham, que colocariam Duchamp como peça principal na construção dessa expressão artística. 

 

       A estética da indiferença apareceu nos primeiros trabalhos de Jasper Johns e Robert Raunschenberg, e nos experimentos de música e teatro de  Cage/ Cunningham: todos usam a neutralidade como seu trampolim. Esses artistas faziam e falavam de arte caracterizada por tons de neutralidade, passividade, ironia e frequentemente negação. "Diversão" e "indiferença" tornaram-se valores positivos. Paralelos e precedentes para essas idéias foram encontrados em Dada e Duchamp. De fato, Marcel Duchamp era uma figura central na estética, além de ser, é claro, uma das suas principais fontes históricas. A estética indiferente emergiu no início dos anos 50, e teve três fases bastante distintas: seus inícios frios e irônicos em Cage, Rauschenberg e Cunningham (como Duchamp como um modelo importante); sua expressão mais pungente na ansiedade muda dos primeiros Johns; e sua fase final enfraquecida na indiferença branda da arte pop e mínima (ROTH, 1998, p.35).

 

Desta forma, as reverberações provocadas pelas ações de Duchamp se tornarão parte constitutiva do processo criativo de diversos artistas posteriores a ele, em especial nos Estados Unidos.  

 

CONCLUSÃO

 

Entender o percurso de Duchamp em busca de sua própria linguagem artística é um grande desafio.  Primeiramente porque o entendimento das ações pessoais de qualquer indivíduo é, por si só, complexo, e essa complexidade é exponencialmente elevada quando se trata de um artista, em especial como Marcel Duchamp, que tem como principal elemento de modelagem a ideia, o conceitual, e que se distancia de suas relações sociais e políticas. Não obstante, é necessário o entendimento das circunstâncias geográficas e temporais a fim da compreensão dessa busca. Em seguida, pela compreensão da ruptura causada pelas inovações postas na concepção dos readymades e a antiarte, bem como as simbologias em Grande Vidro e demais obras do artista. É compreender esse momento como ponto de inflexão que separa a existência de uma nova forma de expressividade dentro do campo artístico.

Sendo assim, pesquisar essa expansão da expressão artística, colocada por Duchamp, bem como suas reverberações e influências são de extrema importância para o entendimento da arte, em especial a do século XX. Através do seu processo de construção artística, Duchamp não apenas trabalhará a ideia do como fazer arte, mas também a concepção do que é arte. É através dessa expansão que Duchamp exercita primorosamente a lição de Cézanne e muda – s ou mesmo supera – as visões de mundo impostas por seus contemporâneos. Essas superações que consequente se transformarão na expansão da expressividade artística ocorrem primeiramente na pintura através do Nu descendo uma escada, e posteriormente na tridimensionalidade em Grande Vidro e os readymades.

Esse exercício cézanniano realizado pelo artista está relacionado ao que Tomkins aponta como desejo de inovação – “A necessidade de fugir da tradição, de fazer uma coisa que nunca tenha sido vista ou pensada” –, e é um dos fatores que promoveram a inflexão na produção duchampiana: o abandono da pintura a fim de novas realizações artísticas.

Os demais fatores apresentados por Tomkins são compositivos e determinantes para o alcance dessa superação cézanniana. Munique será o cenário para essa inflexão, onde a realização das pinturas do auge teórico cubista (figurado em Nu descendo uma escada) coexistirá com o planejamento do Grande Vidro. O que coloca no mesmo momento a concepção, por Duchamp, de duas distantes visualizações de produção artística. Além do mais, a maioria das produções duchampianas pós 1912 carregaram forte influência rousseliana. Seja nos trocadilhos, no mecanicismo, na aleatoriedade ou na poética das suas simbologias, é inegável a importância que o escritor francês terá sobre as produções de Duchamp.

No entanto, dos pontos colocados por Tomkins, faz-se necessário adicionar que a inflexão realizada por Duchamp talvez não se daria de forma tão vigorosa, acentuada e prestigiada se não fosse pelo seu acolhimento nos Estados Unidos. O afastamento do restritivo e rígido circuito artístico francês em favorecimento do jovem e inovador circuito estadunidense traria novas energias e possibilidades de expressão para Duchamp. Em contrapartida, o artista contribuía para a fomentação do panorama artístico estadunidense.

Assim, a ruptura realizada por Duchamp irá reverberar nas concepções artísticas e proporcionar uma mudança intensa na concepção e na discussão do que é arte.

Bibliografia:

APOLLINAIRE, Guilaume. Pintores cubistas: meditações estéticas. Porto Alegre.  L&PM. 1997

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Notas:

[1] Tradução de Márcia Arbex (ARBEX, 2001, p. 95).

[2] “As letras do giz (uma das acepções de blanc) sobre as bordas do velho bilhar” (tradução minha – bem como todas as subsequentes).

[3] “As cartas do branco sobre os bandos do velho saqueador”.

[4] “Como patrono, admirador e amigo, Arensberg iria desempenhar um papel importante na carreira de Duchamp”. TOMKINS, 2005, p.167

[5] DUCHAMP, apud PAZ. 1990, p. 21.