O gesto inaugural da arte (e uma visão da época) pelas mãos de Sulawesi
Gabriel Herkenhoff Coelho Moura
A luz adentra as cavernas e mostra imagens nas pedras. A mera aparência, quimera. Vemos no fundo perfis da verdadeira experiência da necessidade da caça em uma natureza vivida na nudez de seus ciclos e humores, sem controle. Nossos olhos aterram-se em javalis, búfalos-anões, bisões, cavalos, humanos-bichos, contornos de mãos – rastros de animais mágicos cujo vigor permanece nos traços gravados em pigmentos pretos e avermelhados. Temos diante de nós a descoberta de uma forma de expressão a perdurar nas paredes que guardam o exercício nascido antes das coisas terem nomes, agora chamado arte rupestre.
No janeiro de um ano em que uma humanidade recolhida entre suas paredes finas experimenta a dureza de uma natureza alheia – a colocar no espelho a hostilidade secular a ela imposta –, tomamos ciência do encontro das mais antigas expressões figurativas produzidas por nossos antepassados em uma caverna na Indonésia. Em meio à perplexidade, apenas de posse de uma tecnologia que já não apazigua a ausência de controle, descobrimos na ilha de Sulawesi, na caverna de Leang Tedongnge, pinturas de cerca de 45 mil anos que fazem a história da arte deslocar-se e recuar[1]. Mediados por telas (o meio que nos resta, até para não repetirmos a dilapidação de Lascaux e Castillo), vemos um javali selvagem de pelagem eriçada em tamanho natural e o contorno de mãos que entregam uma presença – há ainda dois outros animais frente a frente muito pouco conservados. Na mesma ilha em que havíamos descoberto desenhos de pequenas figuras humanas com caudas e bicos interagindo (teriantropos à caça?) com grandes javalis selvagens e búfalos-anões[2], temos uma nova oportunidade de olhar a pluralidade das expressões do espírito humano e lembrarmo-nos de nossos sonhos antes de crermos em nossa ruptura com a natureza, antes de nos encontrarmos na distância de um absolutamente outro.
Tal acontecimento merece atenção apenas porque aqueles “registros” estimulam a curiosidade arqueológica e antropológica? Certamente, a investigação dos deslocamentos da humanidade do paleolítico rumo a territórios desconhecidos é auxiliada pelos desenhos achados em Leang Tedongnge. Todavia, a suspeita é que tal evento, emergido neste tempo de desorientação e medo (do outro, não-branco, negro, latino, chinês, muçulmano, grosso modo, estranho), diz algo mais sobre nossos caminhos. O espanto antes causado por sítios como as cavernas de Altamira e El Castillo na Espanha ou Lascaux e Chauvet na França ganha novos traços com a visão dos desenhos de Sulawesi. Se as pinturas rupestres da Serra da Capivara no Brasil e de Kimberley na Austrália faziam a história da arte encontrar inícios tardios ao sul, a partir das cavernas indonésias a mítica narrativa de nossa origem espiritual-artística instala-se fora do solo europeu.
Dito isso, ressalte-se: não “registro”, arte. Assim já haviam visto Benjamin, Merleau-Ponty, Bataille[3]. Não importa se, em linguagem benjaminiana, o valor de culto das pinturas rupestres reduz ao mínimo o valor de exposição que se convencionou reconhecer como o próprio das obras de artes. Tampouco importa se os desenhos são frutos dos sonhos de tipos xamânicos, se totens de identificação de grupos, se parte de rituais de fortuna na caça. Aliás, nem mesmo interessa o quanto nossas conjecturas apreendem os sentidos da existência daquelas pinturas. O fundamental é que elas continuam reverberando como gestos de uma humanidade que se projeta e imagina nas paredes das cavernas.
O que, de fato, vemos? A vigência de uma tarefa de expressão, o aparecimento de um “mundo por pintar”, disse Merleau-Ponty[4]. A linguagem exigente, a força de expressão que distingue a beleza da arte, talvez dissesse Gadamer[5]. A inauguração de um gesto que continuamente recomeçamos, com diferentes intensidades, motivos e direções. Não temos ali apenas rudimentos do exercício que ainda é nosso; temos já texturas, perspectivas, movimentos e jogos de proporção – como percebeu Herzog em Chauvet[6]. Temos o aparecimento de um mundo a nos interpelar. Temos figuras que revelam terra e cultura, pedra e artifício, o trabalho de encontro de pigmentos e suportes que faz brilhar a caverna e o engenho. Temos a reflexão de seres humanos acerca de sua animalidade, de seu destino enraizado na natureza (saudando a vida compartilhada com os bichos ou sonhando-se teriantropos ou vestindo-se do couro da caça). E, no mais simples, algo se desvela: os artistas que habitaram aquelas cavernas gravaram nas paredes as mãos com que deixaram figuras nas paredes – talvez maravilhados por seus feitos. Em tais contornos perfaz-se o círculo da expressão, o corpo desenha e é desenhado na pedra. Esse gesto não nos lembra Velázquez a se pintar pintando um quadro ou o artista que deixa sua imagem em um pequeno espelho no fundo da cena retratada e escreve “Jan van Eyck esteve aqui”[7]?
Seja na Espanha, na França, no Brasil, na Austrália ou na Indonésia, aquelas pinturas delineiam, como reza a sentença de Bataille sobre Lascaux, o nascimento da arte.
A antiguidade das pinturas de Sulawesi, em particular, dão-nos uma fresta através de que podemos ver um movimento interno de nossa época. Enquanto o supremacismo branco ressentido agarra-se à crença em sua capacidade ímpar de digerir leite e o governo reacionário de Trump determina que os novos prédios federais norte-americanos devam ser construídos em estilo clássico[8] (em uma anacrônica luta contra a arte moderna degenerada), a narrativa eurocêntrica rui. A visão dos cruzamentos e da pluralidade que conformam as culturas, a percepção do espírito humano a brotar em toda parte é um acontecimento que nos envolve, como hera que cresce e se espraia no concreto por conta própria e, às vezes, contra nossas vontades.
Não nos é estranho o fato de que o berço mediterrâneo do Ocidente só existe junto ao norte da África e ao Oriente próximo – aliás, o surgimento da filosofia grega está ligado à Ásia Menor, à Jônia de Mileto e Éfeso, localizada no que atualmente é costa da Turquia. E, vejam só, judeus médio-orientais formam a sagrada família (ainda que resistamos à imagem, já que isso significaria que diante de nossos olhos estariam ameaçadores “árabes”). Mas não precisamos recorrer a tempos remotos. Nos séculos XX e XXI, vimos a emergência de uma música popular ligada à diáspora africana, base tanto do pop quanto de uma cultura “elevada” (haja vista o espaço ainda ocupado pelo jazz ou pela bossa nova no imaginário e o interesse sempre renovado pelo blues e pelo samba). E, hoje, as periferias negras, latinas (indígenas) e árabes originam não apenas as expressões plásticas que ocupam ruas, galerias e leilões de arte, como também parte da poesia que ressoa para além dos círculos acadêmicos – seja pela percepção da dimensão lírica do rap, seja pela popularização dos slams.
Com Sulawesi temos, agora, uma novidade: entre a Ásia e a Oceania, em uma ilha da Indonésia, foram encontrados os gestos inaugurais da arte figurativa. O velho medo de perder seu centro e o decantado ressentimento podem dar vazão à ideia de que esse é um evento menor perto da exuberância de outros exemplares de arte rupestre e da tradição ocidental nas artes plásticas. Mas se, por um lado, as cavernas europeias e tal tradição mantêm seu brilho, por outro, nessa redescoberta de um “início” evidencia-se aquilo que o pluralismo hodierno já constatara: o espírito é uma festa de que o Ocidente participa somente como mais um convidado. O lançar-se curioso e dedicado ao desconhecido, as perguntas e respostas pelo sentido, o salto misterioso para a expressão, o cultivo de uma linguagem, nada disso tem dono. Não há volta, o resto é autoengano. O sono de uma humanidade estreita não será mais tranquilo sob as ruínas de uma história mistificada e não habitada. No horizonte vê-se uma autocompreensão vivida como farsa, um sonho perturbado por humanos-bichos, em arte e carne, com as mãos à caça.
Notas:
[1] Faço menção à divulgação, no dia 13 de janeiro de 2021, da descoberta de um exemplar de arte figurativa encontrada em uma caverna na Indonésia. O acontecimento foi noticiado, por exemplo, em “Desenho de porco-selvagem em caverna na Indonésia é o mais antigo feito por seres humanos” (https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2021/01/desenho-de-porco-selvagem-em-caverna-na-indonesia-e-o-mais-antigo-feito-por-seres-humanos.shtml) e em “A warty pig painted on a cave wall 45,500 years ago is the world's oldest depiction of an animal” (edition.cnn.com/style/article/cave-art-indonesia-oldest-figurative-art-animal-image-scn-trnd/index.html).
[2] Em dezembro de 2019 (https://www.bbc.com/portuguese/geral-50756103), surgiram as primeiras informações acerca da existência de arte rupestre na caverna Leang Bulu'Sipong 4, também localizada Salawesi, cuja datação apontava que teriam sido produzidas há, aproximadamente, 44 mil anos – o que já representava um deslocamento do início das expressões figurativas.
[3] Apenas como indicação sobre os lugares onde tais autores tratam de arte rupestre: Walter Benjamin apresenta uma breve reflexão sobre tais pinturas no ensaio “A obra de arte da na era de sua reprodutibilidade técnica” (1936), no tópico “Valor de culto e valor de exposição”; Maurice Merleau-Ponty discute um pouco mais longamente o tema em “Linguagem indireta e as vozes do silêncio” (1952), ensaio publicado em Signos (1960); e Georges Bataille tem um texto inteiramente dedicado às pinturas de Lascaux, cujo título é O nascimento da arte (1955).
[4] MERLEAU-PONTY, Maurice. “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”. In: Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 62.
[5] Sobre tal percepção de Gadamer da linguagem artística em geral ver GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método – vol. I. Petrópolis: Editora Vozes, 1999, p. 105.
[6] Refiro-me, aqui, ao documentário A caverna dos sonhos esquecidos (2010), de Werner Herzog.
[7] As pinturas mencionadas são O casal Arnolfini (1434), de Jan van Eyck, e As meninas (1656), de Diego Velázquez.
[8] Este foi um dos últimos atos do governo de Donald Trump. Embora não tenha proibido a construção de prédios arquitetonicamente modernos, sua resolução sugere que se deve preferir o estilo clássico greco-romano, considerado “belo” em contraste à “feiura e inconsistência” modernas (https://www.nytimes.com/2020/12/21/arts/design/trump-executive-order-federal-buildings-architecture.html).