O Grotesco de Arcimboldo na construção do poder do corpo: Teste composte, Grilli e Caprichos para os Habsburgos

Por Francisco Fontanesi Gomes*

Uma dedicação especial e um tanto quanto atrasada, ao Circolo Italiano Leonardo da Vinci, de Jacareí - SP. Não tenho como agradecer a oportunidade por aquela apresentação em 2019.

Bom, caro leitor, mais uma vez eu venho lhe incomodar com algumas ideias. Mas acredito que, apesar de vir falar de mais um artista da tradição ocidental contigo e, talvez até mesmo você já esteja cansado de “tanta” pintura ocidental, acredite, este artista e as suas obras não é tem nada igual em nossa História da Arte, seu poder e significado, portanto, vão além do que é possível imaginar. Giueseppe Arcimboldo (1527 – 1593) talvez seja um dos meus artistas italianos preferidos de todos os tempos. Para um Historiador da Arte, não é muito adequado ou até mesmo fácil falar de artistas preferidos. Existem um número enorme de obras espalhadas pelo mundo, feitas por artistas de culturas, origens e trajetórias completamente distintas, que se reúnem em uma constelação única criada pelas sociedades humanas durante as eras e hoje, muitas vezes, está ao toque de um dedo no touch dos celulares acessar uma dessas lindas estrelas brilhantes pertencentes a uma dessas cadeias de constelações exuberantes, que vão do extremo oriente até a última faixa de terra das Américas banhadas pelo Pacífico, de tantos tempos diferentes e tão antigos quanto a própria escrita.

Arcimboldo é uma estrela que se destaca completamente fora de sua constelação. Seu brilho, que parece tão estranho e inconstante, quando observado de perto chega a nos cegar por um breve momento de tão assustadora a sua capacidade criativa. Não apenas nos agrada, nos incomoda. Você deve estar se perguntando agora, caro leitor: “Nossa, você realmente parece gostar deste tal Arcimboldo, fazendo todas essas comparações. Mas eu nunca vi nada dele. Quer dizer, talvez alguma vez tenha ouvido seu nome e visto um quadro seu. Mas ainda eu estou perdido!”. Não se preocupe, caro leitor, permita-me apresentar-lhe um dos mestres do “Maneirismo” italiano.

Este artista italiano, diferente de muitos de seus pares, que se formavam nas guildas e nos estúdios de artistas de Florença, Veneza ou até mesmo Roma, possui uma cidade de origem bem diferente dos diversos artistas italianos do Renascimento e Maneirismo. Sua cidade natal é Milão, bem ao norte da Itália. E aí vem a pergunta: “Mas Milão também não era um centro do Renascimento? Até hoje a cidade é conhecida por ser uma das mais elegantes da Itália, cheia de eventos como a Fashion Week e monumentos de dar inveja?”

Perceba, meu caríssimo leitor, Milão é sim uma cidade importante, assim como o estado medieval e Renascentista do Ducado de Milão, rico em terras, homens e comércio. Claro, isso atrai uma série de olhares extremamente invejosos e famintos dos lobos das cortes europeias, especialmente quando se viu uma fraqueza! O Duque Ludovico, il Moro, havia sido um grande patrono das artes e, em especial de Leonardo da Vinci, que iria lhe construir uma estatua de um cavalo de bronze maravilhoso para adornar sua capital. O problema é que a fome e os exércitos do rei da França eram mais rápidos vorazes que Leonardo, nesse caso. Após uma série cálculos políticos equivocados com os franceses (inclusive, foi o próprio Ludovico que convidou o rei Carlos VIII da França para invadir a Itália e deu início ao problema todo), estes acabam se tornando inimigo dos milaneses e do Duque, que é destronado pelo rei Luís XII e suas tropas franceses, que irão destruir as primeiras peças que Leonardo montava de seu monumento equestre para a cidade. Mas nesse período, nada é certo ou claro na política da península itálica e, apesar de todo o esforço francês de Carlos VIII, Luís XII para conquistar a hegemonia do Norte e do Sul da Itália, Francisco I (que se tornou um patrono de Leonardo e deu abrigo ao artista italiano até o fim da vida) perdeu tudo em uma tacada só contra o Imperador Carlos V, também rei da Espanha. Agora, Milão, assim como Nápoles e Sicília, não seriam mais um ponto de controle dos franceses, mas sim da família imperial austríaca mais conhecida da época: os Habsburgos.

Estas foram as condições nas quais Arcimboldo cresceu em Milão e na Itália. Sua cidade e a península haviam passado por um processo devastador de guerra entre a França e os Habsburgos e, agora, alemães, mas especialmente, espanhóis, transbordavam para a península italiana do século XVI na forma de exércitos, burocratas e Vice-reis para garantir que a Itália e os Estados Italianos que haviam sobrado, como Florença e os Estados Papais andassem na linha e em conformidade com as políticas dos Habsburgos. E quais eram essas políticas? Travar guerra contra otomanos no mar, franceses em terra e ingleses e alemães protestantes onde fosse possível. Usar a Inquisição Espanhola como forma de combater a heresia e forçar o “rebanho” da Europa de volta para o catolicismo e, acima de tudo, um projeto um tanto quanto titânico: Se tornar a primeira família a governar a Europa e o Mundo Novo de forma “Universal”. Não estou brincando nem inventando nada, caro leitor. Sei que é muito forte essa palavra, mas é o que se pretendia no período. O projeto dinástico dessa família austríaca nada mais era do que os primeiros passos de um absolutismo que iria evoluir para uma política não apenas de guerras (acredite, eram muitas!), mas de uma política de casamentos entre a família pela Europa toda, primos com primos, sobrinhas e tios, primos de segundo grau. Só não era uma versão antecipada de uma peça de Nelson Rodrigues, pois o casamento entre irmãos era um tabu. Desta política de casamento para a manutenção e aquisição de reinos que surgiu a frase “enquanto os outros fazem guerra, feliz Áustria, você se casa!”. Entretanto foi dessa política de endogamia que surgiu também o termo “maxilar de Habsburgo”, o prognatismo que deixava muitos dos imperadores e reis Habsburgos deformados, no pior dos sentidos. Brindes genéticos desta série de casamentos entre membros da mesma família, que só vai piorar no futuro.

Você, caro leitor, me pergunta agora: “Mas que coisa! Que confusão! Não deve ser nada fácil compreender os que essas cabeças coroadas fizeram na Itália e, depois de tudo, metade da península terminar na mão de uma família austríaca de endogâmicos. Ainda assim, o que isso tem a ver com Arcimboldo?”. Eu lhe respondo: “Tudo está interligado!”. Perceba que Milão deixará de ser um centro de produção de grandes obras e projetos arquitetônicos como na época dos Visconti e dos Sforza. A Itália continuaria sendo um celeiro de artistas, mas que se concentrariam mais em Roma e nas cortes europeias, especialmente as de fora da Itália. É como se Milão, assim como Nápoles, tivesse “parado” de produzir artistas. Entretanto, as coisas raramente funcionam assim. Artistas circulavam, trocavam ideias, manuscritos, viajavam. Os Habsburgos, por terem territórios por toda a Europa, acabavam facilitando essas viagens e trocas culturais. É aqui que nosso querido artista milanês entra. Seu trabalho pode não ter encontrado grande sensação na Itália e em sua cidade natal, mas isso não quer dizer que sua carreira estava acabada. Pelo contrário, ela iria resplandecer fora da Itália. Seu trabalho finalmente encontraria interessados.

Esses interessados eram ninguém mais, ninguém menos que os membros da própria família Habsburgo. Em 1562 deixa sua cidade natal para trabalhar na corte do imperador Maximilian II em Viena. Como aponto nosso querido Umberto Eco:

Um caso emblemático dessa tendência é a figura de Arcimboldo, artista considerado menor ou marginal na Itália, que conheceu sucesso e notoriedade na corte dos Habsburgo. Suas surpreendentes composições, seus retratos com rostos compostos por objetos, vegetais, frutos e assim por diante, espantam e divertem os espectadores. A Beleza de Arcimboldo é despida de qualquer aparência de classicidade e exprime-se através da surpresa, do inesperado e da argúcia. (ECO, 2014, p. 220)

Seu começo não é o que se espera de sua inventividade. Em 1563 um de seus primeiros trabalhos conhecidos é um retrato da família do imperador, com sua mulher (sua prima) e de seus três filhos (Figura 1). É clara a intenção do quadro: mostrar a família do imperador como legitima descendente de Carlos V e seu irmão, Ferdinando I, demonstrando as ligações dinásticas entre os dois ramos e, ao mesmo tempo, demonstrar a segurança de sucessão da família imperial, com três filhos para assumir os diversos tronos e, quem sabe, até alguns a mais através de mais algum casamento. Entretanto, é nesse mesmo ano de 1563 que o artista milanês mostra ao que veio. Arcimboldo produz uma sequência de quatro telas, muitas vezes referenciadas como “as quatro estações”. Dois destes quadros ainda se encontram no Kunsthistoriches Museum, em Viena, são eles o Verão (Figura 2) e Inverno (Figura 3). A descrição é até um pouco difícil de ser feita, mas tentarei o meu melhor por você, caro leitor. Em o Verão, ao observá-lo de longe, é possível perceber que temos um tipo de rosto em perfil, com o rosto virado para a direita. Entretanto, é aqui que a semelhança com um ser humano se esvai, pois é possível ver que se trata de uma alegoria no próprio corpo, com uma série de elementos que representam a estação do verão, uma abundância de alimentos. Alhos, ameixas, cachos de uvas, vagens, cerejas, maças, espigas de milho, feixes de trigo entre uma série de outros elementos. Quando se aumenta a imagem (recomento que faça isso no seu computador ou celular, caro leitor) se vê que não se trata de um retrato, mas de uma ilusão de óptica, na qual cada alimento serve como elemento do rosto, do corpo. Como as maçãs, que servem de bochecha para o rosto, ou a vagem, que serve de boca e dentes de sorriso para a figura humano. Os olhos, não são nada mais que uma cereja, e a roupa é toda feita dos feixes de trigo e palha. Ao mesmo tempo que eles formam uma imagem de uma pessoa um tanto quanto bizarra e colorida de longe, ao se aproximar do quadro, se vê que cada um dos elementos funciona sozinho, eles não têm qualquer traço humano, mas são colocados de uma forma especifica pelo artista milanês para criar este “glitch” em nossa visão, é isto o que se chama comumente na obra de Arcimboldo de Teste composte, ou em português, “cabeça composta”. Ao mesmo tempo que vemos uma figura humano reconhecível, não existe figura humana alguma pintada realmente. Me recordo até hoje quando mostrei esses quadros em uma apresentação no Circolo Italiano Leonardo da Vinci da cidade de Jacareí. A reação das pessoas foi incrível, como se tivessem visto pela primeira vez algo que lhes deixava alegremente confusos, com uma curiosidade nunca despertada. Foi surpreendentemente alegre para mim, mas esperada.

Imagine então a reação ao Inverno, que vai ainda mais longe no que se trata do grotesco do corpo. O rosto nada mais é do que um tronco de uma árvore, com diversos troncos quebrados que formam o queixo, o nariz e a orelha do personagem, que também se encontra de perfil. Arcimboldo é capaz inclusive de pensar nos detalhes proporcionam ainda mais poder à sua obra, como um calho que se desprende do corpo principal, na parte que deveria ser o pescoço, mas que acabam dando a impressão de uma veia saltada do pescoço, quem sabe a própria aorta. A boca do personagem, nada mais é do que cogumelos que crescem no tronco e os olhos, talvez como forma de nos perturbar, são buracos no tronco com pedaços de farpas soltas. Assim como em Verão, este personagem também está envolto em roupas de cor bem amarela, combinado com o par de limões que saem do tronco, quase como um tipo de condecoração ou símbolo. Está roupa muda tudo para nós, pois no canto inferior direito, é possível observar uma letra, quase um monograma, um M, que parece ter algum tipo de coroa por cima. Por causa dessa letra, se acredita que este não é apenas um experimento, mas um retrato de uma pessoa real, e não qualquer pessoal. É próprio imperador Maximilian II. Se for levado em conta, caro leitor, que este é o imperador, existe algo completamente poderoso sendo feito aqui. Apesar de um dos elementos considerados parte da obra de Arcimboldo é o Grilli, ou seja, uma “brincadeira”, esta é uma “brincadeira muito séria”, nas palavras de Thomas DaCosta Kaufmann. Retratos são um gênero muito sério para as famílias europeias deste período, elas de certa forma, transmitem não só o monarca á sua semelhança, mas também outros dois elementos estão presentes: A extensão do “corpo do rei”, algo considerado muito sagrado, e a construção de um “corpo ideal”, no sentido mais pesado que a palavra ideal pode ter. São ideias transmitidas por grande Historiadores, como Enrico Castelnuovo e Ernst Kantorowicz.

“Para que se arriscar a fazer um retrato desse tipo para o seu principal patrono?”, você me pergunta, caro leitor. No que te respondo: Arcimboldo achou uma expressão artística única para o seu período, e por mais que pareça bobo, isso agradava a esses imperadores austríacos. Era mais um elemento em que eles poderiam transmitir ideias de si mesmo e de seus ideais universais e católicos. Entretanto, no Inverno ainda existe dúvida se realmente é um retrato do imperador. E ainda haverá uma produção ainda maior nos próximos anos por parte de Arcimboldo. O artista milanês fará Grilli ainda mais autênticos, enganadoramente grotescos, e curiosamente simbólicos. Brincando agora com os elementos, Água (figura 4) e Fogo (figura 5) serão exemplos incríveis de sua capacidade, que também estão conservados no Kunsthistoriches Museum até hoje. Datados de 1566, são quadros com os quais podemos especular seus significados com a Monarquia Habsburgo. Em Água, existe quase que uma “elegância grotesca”, em que o artista milanês usa como elementos para nos enganar; e nos divertir; uma série de animais marítimos. Peixes dos mais variados, raias, crustáceos, pequenos tubarões, polvos, caranguejos, tartarugas e conchas, todos fazem parte deste combo de elementos. Até uma foca se encontra entre os diversos animais. E para contrapor tudo isso, ao mesmo tempo se ligando com o tema, a mais rara das joias do mar: pérolas. Um colar usado pela figura no que seria o pescoço e um brinco com uma pérola em forma de gota, uma moda muito comum no século XVI e XVII, inclusive para homens.

Já em Fogo, temos uma série de elementos interessantes, em especial alguns que podem ser ligados com a Monarquia e seu poder. Não apenas o fogo, mas o metal também é um elemento importante aqui. Velas queimando, pavios de pólvora prestes a explodir, cabelos que são substituídos por uma série de pedaços de madeiras incandescentes. O rosto parece uma rocha em brasa. Entretanto, o que mais me chama a atenção aqui, são os metais como eles aparecem. É possível ver que no busto existe uma série de armas, inclusive algumas bem modernas para a época, como canhões, bombardas e uma pistola, além de uma placa com pólvora bem próxima dessas armas. Logo ao lado deles, é possível ver um símbolo inconfundível: a águia bicéfala dourada em um campo verde. “Por qual motivo ela é importante?”, você me pergunta, caro leitor. Ela é nada mais, nada menos que um dos símbolos dos Habsburgos, que também eram Sacro Imperadores. E mais um símbolo contribui para a ligação com eles: a corrente dourada que segura a cabeça do que parece ser uma ovelha ou um bode, na verdade, sua lã. Na verdade, essa é a condecoração do Tosão de Ouro, usada quase que exclusivamente pelos imperadores Habsburgos e por membros muito próximos da família. Não é qualquer um que teria acesso a algo desse tipo. Não sem autorização e promulgação imperial. Observe, leitor, como Arcimboldo usa sua imaginação, sua capacidade inventiva, ou como chamamos na História da Arte, seu Capricho, para entregar ao seu patrono algo poderosamente simbólico. Na Hungria, sempre existia o problema otomano que poderia aparecer a qualquer momento, era uma fronteira extremamente instável. No Norte, os principados protestantes alemães, apoiados pela Suécia, Holanda e Inglaterra ameaçavam o domínio imperial e seu ideal católico. Fogo pode não ser um retrato de uma pessoa, mas é um retrato do “exército dos áustrias”, além de poderoso, é moderno e preparado para combater qualquer ameaça, seja do Leste ou do Norte. Este quadro é uma poderosa afirmação e, de certa forma, uma declaração imperial de que eles não irão ceder, pelo contrário, irão conquistar. Mesmo que esse não seja o caso.

Arcimboldo, depois de tanto trabalho e de assegurar seu lugar na corte dos áustrias, se sente seguro o suficiente para rascunhar um autorretrato que chegou até nós, conservado hoje na Galeria Nacional de Praga (Figura 6). O artista milanês se pinta de frente, com roupas de um cortesão, mostrando a segurança de sua posição e seu status, mas também com uma toca, muito parecida com a de autorretratos de outros grandes artistas cortesãos, como Tiziano, que também trabalhou na corte dos Habsburgos, primeiro para Carlos V e depois seu filho, Felipe II. E sua carreira tomará rumos ainda mais fortes e mais próximos ao poder, com a ascensão de seu principal patrono e admirador, Rudolf II em 1576.

Este novo imperador trará uma marca ainda mais curiosa e artística para o seu reino. Rudolf era conhecido por ser um ser extremamente interessado em Arte, bibliotecas, acúmulo de conhecimento, ciências e, segundo alguns, o “oculto”, alquimia. Para tanto, ele se cercará de figuras que irão lhe ajudar nesta busca. Juristas, Historiadores, Cientistas e, claro, Artistas. Muitos desses virão ainda da época de seu pai e de seu avô, como Wolfgang Lazius, Historiador oficial da corte e, muito provavelmente, o homem que inspirou o Bibliotecário de Arcimboldo, produzido por volta de 1566 e hoje guardado no Skoklosters slott, na Suécia (Figura 7). Sua “brincadeira” em transformar a figura de Lazius em nada mais, nada menos que um montante de livros e tomos de biblioteca. Nada mais justo para um Historiador oficial da corte, a meu ver. Outra figura que será possivelmente homenageada pelo pintor milanês é o humanista da época do bisavô de Rudolf II, Maximilian I, o jurista Ulrich Zasius (Figura 8). Conservado hoje no Museu Nacional da Suécia, os elementos usados na figura são um tanto quanto bizarros. Apesar de toda a deferência, com livros sendo o suporte de seu corpo, que é coberto por uma grande capa coberta de pelos e uma série de papeis e escritos, formando parte dos ombros e do pescoço, o rosto é composto por galinhas e galetos assados, e dois peixes. Como jurista já havia morrido há muito tempo, não se sabe bem o que Arcimboldo e corte ouviram de seu comportamento. Talvez ele fosse algum tipo de glutão, ou quem sabe essas eram suas comidas favoritas. Ou quem sabe algum tipo de piada com sua figura, pois por um tempo ele havia seguido Martinho Lutero? Difícil dizer, mas o que nos interessa é que o artista milanês já está produzindo uma série de pinturas, especialmente de pessoas reais, “brincando” com suas formas, a natureza e a ótica. Estas características irão servir á Rudolf II perfeitamente e à sua visão de mundo mais à frente.

O imperador se dedicará completamente ao recolhimento de todo o conhecimento possível que o ouro e prata emprestado de seus parentes espanhóis poderá comprar. Sua primeira ideia é de concentrar todo esse conhecimento em um lugar diferente de Viena. Ele escolherá como sua sede de governo a cidade de Praga, no antigo reino da Boémia (hoje, Tchéquia). A cidade era extremamente rica, havia sido sede de uma série de imperadores medievais e, com certeza, era bem mais afastada da fronteira com os turcos do que Viena, que já havia sido sitiada uma vez e quase caiu nas mãos do Sultão Solimão I. Ele tomará residência no magnifico castelo de Praga (Figura 9), reajustado e reformando o complexo para acomodar seus cortesãos e sua coleção, com certeza um modelo para Versalhes. E ele precisaria de espaço, pois como todo o bom Habsburgo, ele seria responsável, junto com seus artista e cientistas, pela criança de uma Wunderkammer ou Kunstkammer. Estes termos são normalmente traduzidos literalmente como “câmara de maravilhas” ou “câmara de artes”, mas no Brasil normalmente chamamos esse tipo de empreitada de Gabinete de curiosidades. Elas eram coleções gigantescas, que abarcavam desde interesses em obras de arte, quase como uma coleção particular hoje, até uma “mistureba” de todo o tipo de coisas: fosseis, pedaços de pedras preciosas, mapas e mais mapas. Tudo o que fosse curioso o bastante e passível de acumular conhecimento, era levado em conta. Uma representação de uma Wunderkammer pode ser encontrada preservada no Kunsthistotiches Museum, feita por Frans II. Francken (Figura 10), com quadros pendurados na parede, junto há uma série de animais marítimos, moedas antigas, joias e outros. Existe também a representação da coleção de um sobrinho-neto de Rudolf, o arquiduque Leopold Wilhelm, verificando sua imensa coleção de pinturas (Figura 11), muitas das quais, provavelmente, fizeram parte da coleção de seu ancestral ou até antes de Rudolf. Uma das peças mais lindas a sobreviver da Kunstkammer de Rudolf, é um globo celeste, com um relógio e sustentado por um Pegasus (Figura 12). Todo decorado em prata e dourado, o Globo é uma amostra das constelações, que poderia ser movida e estudada a qualquer momento pelo imperador através de um mecanismo complexo para o período. Este é só um exemplo da complexidade da coleção de Rudolf, mas também o seu desejo se possuir ao mesmo tempo, objetos exóticos e raros, e que se mostrassem uteis para a reunião do máximo possível de conhecimento. Não é à toa que figuras da astronomia como Tycho Brahe e o famosíssimo Johannes Kepler irão montar seus laboratórios e pesquisas em Praga, à convite e proteção de Rudolf.

Entretanto, nenhum deles pode dar a Rudolf II o que ele realmente queria: um tipo de elevação, uma transformação de seu corpo. Pelos retratos que sobreviveram do imperador, fica claro que ele não era uma pessoa de corpo muito atrativo, como no quadro de Hans von Aachen (Figura 13). O peso da endogamia já pode ser visto no rosto do imperador, com o seu maxilar extremamente protuberante, o qual Aachen tenta esconder com sua barba, tentando modelar os contornos do rosto ao dela. Entretanto, não só não é possível como o sobrepeso do imperador fica claro para o observador, muito provavelmente uma mistura de excessos gastronômicos e a genética o deixaram cada vez mais debilitado fisicamente. Entretanto, é aqui que nosso amigo milanês entra, para entregar a Rudolf II a visão que ele sempre quis ter de si mesmo, e mais, a transmutação de seu corpo em algo ainda mais poderoso simbolicamente do que se pode imaginar. Este é o Retrato que Arcimboldo fez do imperador em 1591 e o chamou de Vertumnus (Figura 14). Ele é completamente fora do padrão para um retrato do período. E esta é a primeira Teste composte do artista milanês, que se pode confirmar que é de um membro da família imperial. O mais importante, por sinal. O corpo de Rudolf é transformado completamente. Suas bochechas viram maçãs, seu nariz é uma pera, e seus característicos lábios proeminentes são as mais vermelhas e maduras cerejas, assim como seus olhos. Cachos e mais cachos de uvas verdes e pretas adornam sua cabeça, com veios de trigo despontando dela, inclusive uma espiga de milho faz parte de sua anatomia. Por falar em anatomia, seus ombros, pescoço e peitoral são vegetais dos mais variados. Mas ao invés de serem elementos “perdidos”, cada um deles é encaixado pelo artista milanês com uma precisão maravilhosa, dando ao corpo do imperador uma nova forma. Parece uma completa quebra de semelhança e das “regras do retrato”, mas é aí que está o ponto. Se o retrato também pode ser uma imagem idealizada do imperador, construída, aqui existe algo especial. Seus lábios exagerados, seu maxilar, seu rosto estranho, sua gordura se transmutam em músculos, em lindas e deliciosas frutas e vegetais que enchem os olhos do observador. Como escreveu nosso querido Umberto Eco:

“Temos então uma escolha do expressivo contra o belo, uma tendência ao bizarro, ao extravagante e ao disforme, como nas figuras de fantasia de Arcimboldo.” (ECO, 2014, p.169)

Mas aqui existe algo mais que o expressivo, especialmente se imaginarmos que este não é o corpo de qualquer pessoa, mas do imperador. Finalmente, Arcimboldo compreendeu o poder e potência que o corpo poderia ter e, como um tipo de “alquimista”, fez do monarca que sonhava demais com as estrelas e as divindades o que ele queria ser: um Deus. Seu poder é inquestionável neste retrato. Ele é simbolicamente e “fisicamente” aquilo que, como um Deus, Rudolf II aspirava ter: um corpo extremamente musculoso e viril, que não existe igual na terra, pois apenas deuses possuem esse tipo de corpo. E mais, ele é um Deus das estações, que traz abundantes colheitas e garante aos seus súditos (ou aos mortais) abundância e paz. Está aí o motivo pelo qual o pintor milanês escolhe chamá-lo de Vertumnus, que é o Deus das estações romano. Como aponta Schneider, tudo começou com um Grilli, uma diversão: “A intenção do retrato resulta ainda mais patente no Vertumnus de Arcimboldo. O Deus da vegetação a que aqui se alude é Rodolfo II que, de acordo com Lomazzo, tinha pedido ao artista que fizesse uma coisa divertida.” (SCHNEIDER, 1997, p. 123). Arcimboldo já teria tido contato com a descrição dessa divindade, através das Metamorfoses, de Ovídio, que faziam um sucesso estrondoso entre os círculos humanistas da Europa:

“oh! Quantas vezes, na feição do rude ceifeiro,

num cesto carregou espigas, sendo do ceifeiro imagem perfeita!

Trazia muitas vezes as têmporas cobertas com feno ainda verdes

e parecia que tinha andado a virar erva segada,” (OVÍDIO, 2017, p.773)

Talvez este tenha sido o “estalo”, o momento que Arcimboldo entendeu o que sua arte poderia fazer. Ele, que por tantos anos havia “deformado”, “brincado” e “desmontado” o corpo, agora iria construir para seu imperador o de um Deus romano. Rodolfo elevou Arcimboldo a Conde Palatino em 1580, o maior título de nobreza que um artista poderia receber e, em troca, o agora artista-conde elevou seu mestre à condição de Deus, através da transmutação de seu corpo, um método refinado por décadas desde quando servia ao pai, em 1562. Roland Barthes escreve sobre as obras de Arcimboldo:

“Para o século de Arcimboldo o monstro é uma maravilha. Os Habsburgos, mecenas de pintores, tinham gabinetes de arte de diversas curiosidades [...] Agora, a "maravilha" - o "monstro" - é essencialmente aquilo que transgrede a separação dos reinos, mistura o animal e o vegetal e o humano; é um excesso, pois muda a qualidade das coisas às quais Deus deu um nome; é metamorfose[...]”[1] (BARTHES, 2005, p. 52)

O “monstro”, ou “monstruoso” á que tanto Barthes se refere, nada mais é do que a própria divindade, na minha visão. É também a “maravilha”, outro adjetivo poderoso usado pelo autor francês. O monstruoso e a maravilha existem concomitantemente na obra do pintor milanês, que usa da “metamorfose” para alcançar esse objetivo.

Aí você me pergunta, caro leitor: “Mas nossa, isso me deixa quase atormentado e ouriçado de tão poderoso e perigoso que isso é! O que aconteceu com Rudolf II? Ele deve ter sido um dos grandes monarcas europeus.”. Eu lhe respondo com um simples não, caro leitor. O imperador não teve filhos, o que criou instabilidade em sua sucessão, passando o trono para seu irmão. Ele nunca foi capaz de lidar com as inúmeras questões urgentes internas e externas de seu reinado. Os turcos continuavam a ocupar grande parte da Hungria e ameaçavam a cidade de Viena e a Europa, os Protestantes no Norte e em seu próprio território da Boémia e da Hungria continuavam a crescer. Ele dependia militarmente e financeiramente de seus primos espanhóis e no final de seu reinado, por não resolver as questões de religião dentro do império, acabou deixando com que as condições ideias se formassem para a Guerra dos Trinta Anos, que devastaria seu império, e, mais tarde, sua capital Praga, com sua gigantesca coleção, adquirida com tanto dinheiro, suor e cuidado (inclusive com a ajuda de Arcimboldo), foi saqueada pelos suecos, com a coleção de sua Kunstkammer se espalhando pelo mundo e outras se perdendo no fogo da batalha. É por isso que hoje, Vertumnus se encontra na Suécia, e não em Praga ou Viena. Rudolf II von Habsburg, na História mundial, não passa de uma nota de rodapé. Mas seus artistas, cientistas e intelectuais sobreviveram e, em especial, Giueseppe Arcimboldo, precisa voltar à luz dos nossos olhos para que possamos ver, como ocorre a metamorfose de um corpo em algo inimaginavelmente divino e poderoso. Acredito que homens que querem ser deuses ou que dizem atuar em nome de Deus nada mais são do que mesquinhos que acreditam em seus próprios sonhos (pesadelos, para nós), especialmente nos nossos tempos. Mas por um momento, separe a obra de seu contexto e veja, do que um artista é capaz. Do que Giuseppe Arcimboldo, alguém que estava destinado a ser um “artista menor” em seus primeiros anos, foi capaz de fazer. Ele transformou um conto de fadas em realidade, ele foi o alquimista que transmutou a tinta óleo em um corpo de um Deus. Se ele pôde fazer, por qual motivo nós não podemos transmutar e usar nossos corpos também? Por qual motivo não podemos nossa mente intelectual não pode andar de mãos dadas com o que o nosso corpo pede e precisa? Não fazer isso para monarcas, presidentes, políticos, empresários ou investidores, mas para nós mesmos! Talvez por isso que eu esteja tão interessado em fazer um próximo ensaio, desta vez sobre um que um artista que usou seu corpo e o levou aos limites mais violentos junto à sua Arte: Benvenuto Cellini.

Meu caro leitor, espero não ter lhe cansado muito, e espero ter lhe mostrado um outro mundo da História da Arte, um artista ímpar que nos causa sensações até hoje, depois de tantos séculos. Quero lhe agradecer imensamente com um carinho grande demais para caber em palavras. E mais uma vez, agradecer aos caríssimos integrantes da Revista Guaru, que sempre compram as minhas ideias mais malucas e fazem de tudo para publicar. E uma dedicação especial ao meu Amigo, sempre constante, Lucas Carvalho e a minha Tia, Bendita Fontanesi, que estava presente quando eu falei destes quadros para ela no Circolo Italiano Leonardo da Vinci em 2019




[1] Original em italiano: “Per il secolo di Arcimboldo il mostro è una meraviglia. Gli Asburgo, mecenati dei pittore, avevano gabinetti d`arte di varie curiosità [...] Ora, la “meraviglia” – il “mostro” – è essenzialmente ciò che trasgredisce la separazioni dei regni, mescola l`animale e il`vegetale e l`umano; è l`eccesso, in quanto muta la qualità dele cosealle quali Dio há assegnato um nome; è la metamorfosi[...]”



Bibliografia

BARTHES, Rolande. Arcimboldo. Traduzioni di Giovanni Mariotti. Milano: Abscondita SRL, 2005.

CASTELNUOVO, Enrico. Retrato e sociedade na Arte Italiana: Ensaios de História social da arte. Tradução Franklin de Mattos. São Paulo: Companhia das letras, 2006.

ECO, Umberto. História da Feiura. Tradução: Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2014.

____________ . História da Beleza. Tradução: Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2014.

KANTOROWICZ, Ernst H. Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval. Tradução Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

KAUFMANN, Thomas Dacosta. Arcimboldo: Visual Jokes, Natural History, and still-life painting. Londres: The University of Chicago Press, 2009.

OVÍDIO. Metamorfoses. Tradução: Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora 34, 2017.

SCHNEIDER, Norbert. A Arte do Retrato. Tradução: Teresa Curvelo. Köln: Taschen, 1997.

Imagens

Figura 1. Giuseppe Arcimboldo

Maximilian II und seine Gemahlin Maria von Spanien und seine Kinder Anna, Rudolf und Ernst, 1563.

Óleo sobre tela, 240 × 188 cm.

Kunsthistorisches Museum Wien

Link: https://www.khm.at/en/objectdb/detail/2327/

Figura 2. Giuseppe Arcimboldo

Sommer, 1563.

Óleo sobre madeira, 67 × 50,8 cm.

Kunsthistorisches Museum Wien

Link: https://www.khm.at/objektdb/detail/71/?offset=0&lv=list

Figura 3. Giuseppe Arcimboldo

Winter, 1563.

Óleo sobre madeira, 66,6 × 50,5 cm.

Kunsthistorisches Museum Wien

Link: https://www.khm.at/objektdb/detail/72/?offset=1&lv=list

Figura 4. Giuseppe Arcimboldo

Wasser, 1566

Óleo sobre madeira, 66,5 × 50,5 cm.

Kunsthistorisches Museum Wien

Link: https://www.khm.at/objektdb/detail/74/?offset=3&lv=list

Figura 5. Giuseppe Arcimboldo

Feuer, 1566.

Óleo sobre madeira, 66,5 × 51 cm.

Kunsthistorisches Museum Wien

Link: https://www.khm.at/objektdb/detail/73/?offset=1&lv=list

Figura 6. Giuseppe Arcimboldo

Vlastní podobizna, c. 1570

Pincel e lápis azul sob papel, 230 x 157 mm.

Link: https://sbirky.ngprague.cz/dielo/CZE:NG.K_58115

Figura 7. Giuseppe Arcimboldo

Porträttkarikatyren "Bibliotekarien" troligen på forskaren Wolfgang Lazius, c. 1566.

Óleo, 980 x 710 mm.

Skoklosters slott, Suécia.

Link: http://emuseumplus.lsh.se/eMuseumPlus?service=ExternalInterface&module=collection&objectId=32632&viewType=detailView

Figura 8. Giuseppe Arcimboldo

Möjligen Ulrich Zasius, humanist, rättslärd, målningen betecknas vanligen Juristen, 1566.

Óleo sobre tela, 64 x 51 cm.

Nationalmuseum, Suécia.

Link: http://collection.nationalmuseum.se/eMP/eMuseumPlus?service=ExternalInterface&module=collection&objectId=15897&viewType=detailView

Figura 9. Vista do castelo Praga

Figura 10. Frans II. Francken

Kunst- und Raritätenkammer, 1620/1625

Óleo sobre madeira, 74 × 78 cm.

Kunsthistorisches Museum Wien.

Link: https://www.khm.at/objektdb/detail/751/

Figura 11. David Teniers d. J.

Erzherzog Leopold Wilhelm in seiner Gemäldegalerie, 1650

Óleo sobre tela 124 × 165 cm.

Kunsthistorisches Museum Wien

Link: https://www.khm.at/objektdb/detail/1897/

Figura 12. Gerhard Emmoser

Celestial globe with clockwork, 1579

Partially gilded silver, gilded brass (case); brass, steel (movement), 27.3 × 20.3 × 19.1 cm.

The Met, New York.

Link: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/193606

Link para o vídeo sobre o objeto e seu funcionamento:

https://www.youtube.com/watch?v=FC50D7mQhGg&ab_channel=TheMet

Figura 13. Hans von Aachen

Kaiser Rudolf II, 1606/1608

Óleo sobre tela, 61,5 × 48,7 × 3 cm.

Kunsthistorisches Museum Wien.

Link: https://www.khm.at/objektdb/detail/24/?lv=detail

Figura 14. Giuseppe Arcimboldo

Vertumnus, 1591.

Óleo sobre madeira, 700 x 580 mm.

Skoklosters slott, Suécia.

Link: http://emuseumplus.lsh.se/eMuseumPlus?service=ExternalInterface&module=collection&objectId=32631&viewType=detailView

Link com vídeo do museu do castelo comentando sobre Vertumnus (infelizmente, apenas com legendas em inglês):

https://www.youtube.com/watch?v=aOGFUzqiAyc&ab_channel=Skoklostersslott

*Colaborador externo