O náufrago da razão em Catatau: um convite aos sentidos
Por Quésia Olanda*
Meu bem, meu bem
Você tem quando convém razão
Porém meu bem o que sua razão
Comparada com a minha paixão
Razão não tem o sol pra brilhar
Razão não tem hei de querer [...]
Paulo Leminski
É com a poesia musicada por Estrela Leminski que dou início a essa jornada. Jornada marcada por muitos afetos, os quais tentarei transmitir. Razão e sentidos são questões recorrentes na história da filosofia, uma discussão legítima e intrigante, que expandiu a rota que estava traçando – não em busca de uma resposta concreta, mas de reflexão e contribuições. Para me auxiliar na estrada, coloquei no tocador de música a canção citada, e durante a escuta fui levada a muitas perguntas e dúvidas, transformando-as nesta escritura. O que é a razão em vista dos sentidos? O que é a racionalidade – que por vezes se distancia da praticidade – comparada com as questões palpáveis desta vida? Não que a razão seja uma inimiga, ela tem sua importância e compreendo o ser humano como um ser holístico, isto é, sem dualismo, um ser integral. Mas, e se a razão for insuficiente, não sendo capaz de dar voz ao que acontece no interior?
Caminhando por essa via, fui impelida a pensar com Paulo Leminski, quando um estalo lhe ocorreu, criando assim, uma hipótese-fantasia: “E se Descartes tivesse vindo com Nassau para o Brasil?”. Imagine Descartes – o fundador do pensamento analítico – que colocou a razão em um grau elevado em sua filosofia, ficar boquiaberto mediante as exuberâncias dos trópicos? A ideia veio à cabeça de Leminski durante uma aula de História do Brasil, quando discorria sobre a ocupação holandesa do Nordeste no século XVII, entre 1630 e 1654. O pensador curitibano fazia referência a Maurício de Nassau, um príncipe alemão que, ao ser nomeado a governador-geral da nova colônia, veio para a terra brasilis e trouxe uma caravana com muitos militares, sábios, cartógrafos e artistas. Com sua chegada, Nassau se instalou em Olinda e foi o responsável pela construção do primeiro jardim botânico e zoológico da América do Sul. Vale lembrar que o René Descartes aqui tratado não é aquele do método cartesiano propriamente, mas sim aquele que ao pisar no Brasil foi despido e fortemente envolvido. Leminski, então, o chamou de acordo com a moda da época, latinizando seu nome para Renatus Cartesius.
A resposta dada pelo professor é Catatau – uma obra constituída em prosa experimental, sendo publicada pela primeira vez em 1975. O título é originário do conto Descartes com lentes de 1968, e é tido como um texto embrionário que gerou anos depois o romance-ideia. A palavra “catatau” é polissêmica, repleta de significados e ambiguidade, como “surra”, “pancada”, “discurso prolongado”, dentre outros. Esse movimento tanto ambíguo como polissêmico presente em todo o texto se mostra antecipadamente no título. Um gesto que demonstra um cálculo bem pensado por Leminski durante a composição da obra, pois nota-se que os elementos que norteiam o todo da narrativa são vistos em cada uma de suas partes, dando pistas ao leitor do caminho que o escritor deseja seguir.
O enredo e os personagens do romance já são revelados nas páginas iniciais. Leminski começa fazendo uma brincadeira com o conhecidíssimo silogismo de Descartes: “Penso, logo existo” (Cogito ergo sum) tão referenciado pela comunidade acadêmica e interessados por filosofia. Aqui é materializada a hipótese inicial. Porém, Leminski não escreve o silogismo cartesiano da forma tradicional, do contrário, ele aborda tal frase de forma estranha, diferente da que se costuma ouvir: “ergo sum, aliás, Ego sum Renatus Cartesius, cá perdido, aqui presente, neste labirinto de enganos deleitáveis” (LEMINSKI, 2015). No contexto, Cartesius está debaixo de uma árvore do parque zoo-botânico do palácio de Vrijburg-Olinda, carregando uma luneta em uma mão e um cigarro de maconha na outra. Nesse cenário ensurdecedor, sob efeito da planta, Renatus sem entender, contempla tudo o que compõe o horto-zoológico de Maurício de Nassau. Nesse momento, a razão, que antes estava segura em seu próprio mar, se depara com ondas de outros mares, iniciando seu processo de naufrágio, com base na “presença de um corpo estranho no pensamento organizado de Descartes” (Quinze Pontos nos iis).
A experiência de Cartesius apresenta novamente a ambiguidade da obra, porque ao ter em mãos uma luneta e avistar um país tropical, é registrado – ainda que simbolicamente – o momento em que Renatus se afasta da tradição europeia, enquanto que o cigarro, cujo composição se dá através de uma planta nativa, simboliza sua aproximação em uma nova cultura, a brasileira. Aquele, portanto, que é considerado o pai da razão moderna percebe seu método desfalecendo e enfraquecendo, sendo incapaz de utilizar a razão para controlar seu estado atual gerado pela potência e exuberância dos trópicos. Cartesius se decodifica, se encontra em um lugar no qual o pensamento se limita. Com isso, ele diz: “Penso, mas não compensa” (LEMINSKI, 2015). uma fala instigante, podendo conter diversas interpretações. Mas o que Cartesius quis dizer com isso? O que levou ao pensador europeu que um dia chegou à conclusão que o fato de pensar o traz a existência admitir que pensar não compensa? Ele acrescenta: “Este mundo não se justifica, que perguntas perguntar?” (LEMINSKI, 2015). Admitindo o fracasso da razão, Renatus parece responder ao motivo dessa frase, afirmando: “Este mundo é o lugar do desvario, a razão aqui delira” (LEMINSKI, 2015).
Há uma outra figura importantíssima da narrativa, o mais surpreendente e autêntico Occam, um monstro do zoo de Maurício Nassau. Essa entidade (Ogum, Oxum, Egum, Ogan) é caracterizada como um ser lógico-semiótico, isto é, abarca a linguagem tanto verbal como não verbal, e é chamado por Leminski de “monstro vanguarda”. A aparição de Occam é repleta de perturbações de sentidos, é caracterizado como um tipo de desarranjador do texto. Sua participação é responsável pela ilegibilidade e tantas informações da obra, bem como demarca a linguagem e faz com o que o texto se entenda no seu não entender. O autor escreve: “Occam vê o óbvio. Deixa o óbvio ali. Pensa uma oração e o óbvio desaparece. Occam não pensa nada, se nadifica e falta” (LEMINSKI, 2015). Occam, cita o filósofo brasileiro, é o próprio espírito do texto. É um orixá asteca-iorubá encarnando num texto seiscentista. (Descordenadas Artesianas)
As construções inesperadas vivenciadas por Occam evidenciam uma das intenções da obra, qual seja, ser uma história de uma espera. Existe uma expectativa tanto do leitor quanto do próprio Renatus em compreender, mas obviamente, a expectativa é frustrada. O protagonista vai passar o livro todo esperando por Articzewski – o explicador – que só chegará na última página. A chegada de Articzewski, porém, será em vão, pois ele chega bêbado e incapaz de fornecer as explicações que Renatus Cartesius tanto deseja. E mais uma vez ocorre a queda da razão, um certo desequilíbrio, que culmina no processo de encontro com os sentidos.
O romance-ideia, então, faz com que o leitor perca a mania de procurar as coisas, de buscar razão e motivos para tudo, escreveu Leminski. A obra verbaliza o fato de a lógica não ser limpa, como planeja o pensamento europeu, desde os tempos de Aristóteles. No Brasil, esse modelo não funciona, não converge com a experiência. A obra do escritor brasileiro deseja “lançar bases de lógica nova.”
Ao introduzir na narrativa um filósofo cujo marca é a racionalidade, um símbolo da lógica ocidental e deslocá-lo para as terras brasileiras – lugar banhado de cor, bestas e natureza que não são passíveis de explicação pelo filósofo da razão –, Leminski revela em seu escrito os limites da lógica ocidental e dos discursos científicos como maneiras de captação do real. O cartesianismo é afetado pela marijuana e é retirado de sua localização, e esse deslocamento se expressa por meio de Occam.
No Brasil a razão delira, como mencionado acima. Diante da riqueza da natureza e de tudo o que a compõem, bem como os costumes e práticas dos indígenas, Cartesius vê sua razão naufragar, sendo levada pelo mar da nossa brasilidade. Descartes experimentou na sua vinda ao Brasil – em termos da filosofia cartesiana – um entendimento perturbado pela imaginação. O Catatau, segundo Leminski, “é o fracasso da lógica cartesiana branca no calor, o fracasso do leitor em entendê-lo, emblema do fracasso do projeto batavo, branco, no trópico.” É arte, é criação de palavras ou melhor dizendo, “outras palavras”, como cantou Caetano Veloso em 1981.
Em Catatau, comenta Ivan da Costa, se encontra uma “deglutinação antropofágica da cultura europeia em um novo produto made in Brasil.” É o movimento de dar voz à corporeidade, aos afetos. É querer não o que a cabeça pensa, mas o que a alma deseja, como canta Belchior. Isso não significa viver sem medir as ações ou de forma irresponsável. Não é uma anulação do intelecto. É reconhecer o lugar dos afetos, afirmar a vida – de maneira semelhante ao que diz Nietzsche, o filósofo do martelo. É um convite que permite à mente ser afetada pela imaginação. Um convite a não entender, afinal, nas palavras de Clarice Lispector, “viver ultrapassa qualquer entendimento”.
Na sua experiência no Brasil, Cartesius se depara com a irracionalidade e com o reconhecimento da importância de deixar de apenas meditar para se permitir ser entregue às discussões empíricas e ordinárias. Nota-se em Catatau o enaltecimento da beleza do pensamento brasileiro, originário e popular; uma mistura do Concretismo com o Tropicalismo; um convite às nossas raízes, a valorização da nossa cultura e saberes, da beleza nacional, em suma, um convite aos sentidos. Assim, finalizo essa jornada com o mesmo teor das palavras iniciais: o que é a razão comparada com a paixão?
Referências Bibliográficas
BELCHIOR. Coração Selvagem. (4:44min)
COSTA. I. A literatura destronada (a literatura reconstruída). O Globo, Rio de Janeiro, 1978. LEMINSKI, P. Catatau. São Paulo, Editora Iluminuras, 2015.
_____. Quinze Pontos nos iis. São Paulo, Editora Iluminuras, 2015. _____. Descordenadas Artesianas. São Paulo, Editora Iluminuras, 2015. _____. Descartes com lentes, 1968.
_____. Razão. (3:04min)
LISPECTOR, C. Perto do Coragem Selvagem. Rio de Janeiro, Rocco: 1943. VELOSO, Caetano. Outras Palavras. (3:50min)
*colaborada externa