O terrível pai russo e sua imagem: Ivan IV e o assassinato de seu filho por Ilia Repin e seu sentido na contemporaneidade

Por Francisco Fontanesi Gomes*

Aos brasileiros que continuam a ser engolidos pelo vírus que assola nosso país.

Pelos filhos que são assassinados por seu próprio pai.


Olá novamente, caro leitor. Hoje vim lhe trazer um quadro um tanto quanto distante de nossa tradição ocidental, mas que diz tanto sobre a Rússia de ontem e de hoje quanto a visão do que é governar como um autocrata. Muitos tiveram a possibilidade de acompanhar a minissérie produzida pela HBO, Chernobyl, de 2019. Ao dramatizar os erros cometidos pelos órgãos da União Soviética que levaram à explosão da usina termonuclear de Chernobyl, na Ucrânia Soviética, em 26 de abril de 1986, a série alcançou um grande sucesso e despertou novamente o interesse pelo desastre e, mais importante, qual foi a causa e sua ligação com a revelação de que os Apparatichiks haviam escondido uma falha de design que levou o reator a explodir. A série também foi muito elogiada por sua capacidade de transmitir uma certa fidelidade no que diz respeito às vestimentas dos personagens, a reconstrução da cidade modelo que hoje se encontra abandonada. Os ternos, o porte dos personagens, a presença de militares e símbolos socialistas conferem um tom muito único do período, o da Guerra Fria.

A paranoia em proteger os segredos de seus projetos militares e nucleares levou o partido comunista a esconder tudo que fosse relacionado a essas áreas às últimas consequências, gerando um grande preço pago em vidas humanas para corrigir um acidente que poderia ter sido inimaginavelmente maior e muito mais desastroso. Mas agora, caro leitor, você deve estar se perguntando: “Mas por qual motivo estamos falando dessa série? O que ela mostrou que chamou tanto a atenção e o que isso tem a ver com a autocracia na Rússia?”. Bem, caro leitor, ao assistir a minissérie de cinco episódios, em seu terceiro episódio o personagem de Jared Harris – Professor Legasov – já está ciente do drama que se desenrola e de como o núcleo da usina continuar exposto pode acabar com a vida na Bielorrússia e na Ucrânia soviéticas. Professor Legasov aguarda por uma reunião com os principais ministros e figuras do governo, como o próprio Secretário-Geral do partido comunista, Mikhail Gorbatchov. A sala na qual ele espera é um grande corredor branco, cheio de colunas e lustres que dão um tom de elegância e denotam que este é o prédio de onde a União Soviética é governada em Moscou. Neste ponto da minissérie, apesar do incêndio na usina estar sendo controlado, muitas pessoas são mostradas neste terceiro episódio morrendo em decorrência da ajuda dada para controlar o desastre. Além disso, a cena anterior mostra uma das físicas que trabalha com Legasov sendo presa pela KGB por estar ameaçando divulgar as suas descobertas sobre os protocolos de segurança que estão recebendo os afetados pela radiação. Logo depois, já é possível observar o Professor esperando pela reunião com os ministros soviéticos. O lugar já havia aparecido no episódio anterior, mas agora ela possui um novo elemento decorativo. Ao observar a movimentação da câmera, ela mostra no segundo plano da cena um quadro do que parece ser um homem com os olhos esbugalhados segurando alguém em seus braços. Ao observar mais durante os próximos minutos da cena é possível vê-lo novamente de alguns ângulos diferentes e identificá-lo. E essa tela, já lhe digo de antemão, caro leitor, não é qualquer uma. Seu significado é poderoso.

Esta é uma pintura real, conhecida pelo seu título Ivan, o Terrível, e o Seu Filho Ivan em 16 de novembro de 1581 (fig. 1), produzido por um dos grandes artistas russos do século XIX, Ilia Repin (fig. 2). Esta pintura é o que chamamos comumente na História da Arte de “pintura de história”. Este termo normalmente é usado para definir obras em que se retratam períodos históricos. Este tema foi muito famoso na pintura europeia, em especial no século XIX, quando o Nacionalismo estava na agenda de todos os governos europeus do período. Nesta obra, Repin representa um momento seminal da História Russa: o czar Ivan IV, ou Ivan, o Terrível. Um epíteto assustador, mas, como será possível ver, caro leitor, não sem seus motivos. Mas, antes de falar do Ivan, vamos analisar o quadro, que descreve um dos momentos mais chocantes e trágicos da História russa. Nele vemos o próprio czar Ivan, a figura mais velha e que segura ninguém menos do que seu filho, o czarevich Ivan Ivanovich. É possível observar que Ivan está desesperado. Seus olhos parecem saltar de seu rosto, que miram o inimaginável acontecendo, além de segurar o seu filho e herdeiro, que está com a cabeça ensanguentada, manchando as mãos de seu pai. E, sim, o filho de Ivan está morto, golpeado na cabeça. O leitor pode se perguntar: “Que horror! O que aconteceu com o filho do czar? Morreu em uma guerra? Se acidentou?”.

Bem, caro leitor, a resposta é mais horrorosa. O próprio Ivan é que mata seu filho e herdeiro do trono! E, é claro, sempre vem a pergunta, caro leitor, de como “é possível? Por qual motivo Ivan cometeria um ato tão vil?”. A reposta nem sempre é completamente clara, mas pode ser entendida na própria biografia política do Czar. Sua infância foi marcada pela morte prematura de seu pai, Basílio III, e de sua mãe, que o deixou nas mãos dos Boyardos, o grupo da nobreza tradicional moscovita. As diversas facções e famílias nobres moscovitas aproveitaram a oportunidade de um monarca ainda pequeno e se agarraram ao poder, usando métodos traiçoeiros para alcançar seus objetivos e destroçar seus adversários. Foi neste ambiente de conspirações e dissimulações que o jovem czar cresceu, e carregaria um grande amargor de toda essa situação durante sua vida, sempre paranoico (ou não) quanto aos Boyardos. Isso marcará o monarca russo, que usará de todos os meios para diminuir o poder das elites tradicionais das cidades mais importantes do período – Moscou e Novigorod – e iniciar um processo de centralização absoluta, que resultará no Estado russo encabeçado pela monarquia e apoiado pela Igreja Ortodoxa. Assim como as diversas monarquias europeias do século XVI, a Rússia também iniciará um processo parecido com o Absolutismo, no combate à nobreza feudal e centralizando diversos aspectos da vida política nas mãos do monarca. Ainda assim, é necessário pensar aqui, caro leitor, que este processo não é uniforme e a Rússia não passa por esse processo da mesma forma que outros países europeus. Um dos mais importantes Historiadores sobre o absolutismo, o inglês Perry Anderson, fala sobre a contribuição de Ivan como sendo essencial para o estabelecimento da autocracia russa:

Ao se proclamar czar, Ivan IV ampliou e radicalizou esse processo por meio da expropriação aberta de proprietários hostis e da criação de um corpo de guarda terrorista (oprichiniki), que recebia herdades confiscadas em troca de seus serviços. Embora tenha sido um passo decisivo rumo à construção da autocracia czarista, a obra de Ivan IV muitas vezes recebe uma coerência retrospectiva um tanto indevida (ANDERSON, 2016, p. 365).

A participação do monarca russo no processo que colocou os pilares da autocracia russa é deixada clara por Anderson. O terrível monarca deixou uma marca indelével na História do Estado russo com três grandes feitos: A conquista de Cazã em 1556, que só foi possível pela reestruturação militar pela formação da Streltsy, basicamente um exército russo permanente sustentado pelo Estado. É por esta conquista militar que Ivan encomenda uma das obras arquitetônicas mais características da Rússia, a catedral de São Basílio, em Moscou. O último, e um dos mais assustadores feitos do czar, foi a criação da Oprichnina. Primeiramente, ela pode ser entendida como a administração do território mais ao norte que pertencia à antiga República de Novgorod, que era dominada diretamente pelo czar e não passava por qualquer influência dos Boyardos. Mas a Oprichnina também pode ser entendida como a força policial que estava sob comando do Czar. Esta força, com seus membros conhecidos por oprichniki, era composta por seis mil homens e nada mais era do que uma força repressora que deu poderes nunca vistos antes ao monarca russo, que pode controlar seus antigos rivais Boyardos através de uma repressão brutal, com a tomada de terras. Ou seja, Ivan teria agora um exército moderno, que lhe permitiria conquistar seus inimigos e aumentar o território russo. Internamente, o czar poderia exercer o controle de seus nobres e da Igreja Ortodoxa através de sua força policial, evitando que seu poder fosse questionado. A Oprichnina era, caro leitor, nada mais do que uma das primeiras forças organizadas repressivas de um país, que tinha como único objetivo reprimir qualquer ameaça ao Estado e ao czar. Talvez seja a Oprichnina que dará origem a tantas instituições russas de repressão – resguardando-nos sempre do anacronismo, é claro. A paranoia de Ivan agora poderia ser combatida e seus opositores esmagados como insetos. Talvez uma das primeiras amostras de violência da qual o czar terrível foi capaz tenha sido o Massacre de Novgorod, em 1570.

Ivan lançou mão de seus oprichniki contra a cidade, pois havia a suspeita de uma traição dos nobres locais. Logo a população da cidade foi massacrada pelas forças repressivas do czar, com diversos relatos de dezenas de milhares de mortos, assim como uma destruição quase completa daquela que era uma das maiores cidades da Rússia até então. Chamada também de “a vingança de Ivan”, o czar não parecia ter grande apreço pela população da cidade, que o desafiava e despertava sua paranoia. A força policial de Ivan finalmente mostrou a que veio: além de perpetrar um ato de violência contra o próprio povo russo, o confisco de terras se mostrou uma das formas mais importantes de quebrar o poder da nobreza local, além de acabar com toda uma cidade comercial no processo. É claro, caro leitor, que outros reis da Europa deste período também serão responsáveis por atos desprezíveis contra seus próprios povos neste processo de modernização, como o próprio Henrique VIII da Inglaterra, que perseguiu e executou diversas oponentes, inclusive suas próprias mulheres. Ainda assim, o que Ivan fez foi algo tão singular que empalidece o exemplo de seus contemporâneos pela escala da violência e pelo uso do que é possível chamar de uma força policial repressora, que ecoará pela História russa e do Leste Europeu. O pai da Rússia agora sacrificava sua própria população em prol do seu poder e centralização do Estado. Ainda assim, sua paranoia nunca irá embora, mesmo depois deste massacre. Muitos discutem quais eram as motivações de Ivan para essa contínua desconfiança, se era motivada pela sua política de centralização, se poderia até ser uma doença mental, ou ambos. Sua paranoia ficou tão marcada que muitos artistas do século XIX sempre o representam com uma grande barba desgrenhada, um cabelo calvo e ralo, também desgrenhados. Uma expressão sempre adoecida e um olhar lancinante e medonho de desconfiança. É difícil saber como Ivan realmente se parecia dada a falta de retratos do período – apesar de que uma pintura conservada no Museu Nacional da Dinamarca (fig. 3) represente Ivan e é muito próxima do período em que o monarca viveu, sendo um provável retrato seu. Ela mostra seu rosto, com a sua enorme barba e seu cabelo calvo, mostrando um pouco de sua provável fisionomia e que servirá de base para diversos artistas. O que se sabe é que o czar nunca se sentirá seguro, inclusive entre seu círculo mais íntimo. Segundo Isabel de Madariaga, que produziu uma obra sobre o czar, em 1571 já havia uma rixa entre Ivan e seu filho mais velho, o czarevich Ivan Ivanovich. A ruptura entre os dois parecia tão séria que Isabel relata inclusive que nobres começaram a tomar lados, criando facções entre pai e filho. Para um monarca absolutista que queria centralizar o poder em suas mãos, uma situação dessas era inaceitável. O czarevich era casado com Elena Sheremeteva, e seu pai sempre desconfiara de sua família. Vários tios de Elena já haviam morrido executados por Ivan em suas suspeitas de conspiração e poucos da família haviam sobrado. Segundo Madariaga, os relatos seguem que Elena não estava vestida adequadamente para uma moça da corte do czar, o que levou Ivan a espancá-la. Pior ainda, a sua nora estava grávida de seu neto, o que causou um aborto. Ao saber disso, o filho de Ivan, inconformado e enraivecido com a situação, começou a discutir com o seu pai sobre o ocorrido. Nesta acalorada discussão, Ivan, em um acesso de raiva, usa seu cajado e golpeia seu filho na cabeça. A cajadada, tão forte e violenta, acaba causando um ferimento irreparável em seu único herdeiro. Apesar de chamar os melhores médicos disponíveis na Rússia, seu filho morre em quatro dias. Com “uma cajadada” infeliz, Ivan perdeu seu filho e neto, assim como os herdeiros do trono da Rússia. Ivan seria o primeiro czar da Rússia, mas seria o último de sua dinastia, os Rurik.

A partir desse relato, várias impressões surgiram de como o czar reagiu sobre o que havia feito – seu “crime e castigo”, por assim dizer. Ainda assim, na História é muito difícil afirmar, caro leitor, o que realmente se passou pela cabeça do czar filicida. Ele havia perdido não apenas seu filho e neto pelas suas próprias mãos, mas, em um ponto de vista político, ele havia perdido o futuro de tudo o que havia construído para a sua dinastia. E é por este evento, esta loucura, que o czar terrível sempre será lembrado, inclusive pelo próprio povo russo. Não é de se surpreender que Repin irá pintar esta cena da História russa. Sua capacidade de comover e ao mesmo tempo enraivecer o seu observador com esta tragédia é muito poderosa. Mais do que isso, nas mãos de um artista como Repin ela se torna ainda mais potente na mente dos observadores. As escolhas que o artista russo fez são deveras interessantes, pois ele escolhe um momento específico, que não necessariamente foi real, mas que em nossas mentes se torna extremamente factível. Este momento é quando Ivan percebe o que fez, depois de seu acesso de raiva, e sua empatia retorna completamente, como em um turbilhão profundo de emoções de desespero, arrependimento e luto. É como se apenas neste momento o czar recuperasse sua sanidade e emoções e estas fossem demais para se lidar. Repin faz com que todo o corpo do monarca demonstre seu arrependimento e desespero: suas mãos se agarram ao corpo de seu filho, com as veias saltando. Com sua mão esquerda o czar tenta estancar o sangramento da ferida, mas é possível observar que esta continua vertendo sangue; mas é em seu rosto e, em especial, seus olhos que toda a força emocional se concentra. Seu rosto parece extremamente envelhecido, inclusive com muitas rugas e com seus cabelos e barba pretos relativamente esbranquiçados. Mas seus olhos, estes sim resplandecem todo o pavor da cena. Seu arrependimento, seu desespero, tudo é transmitido por eles. Nem é necessário ver seu grito, pois seus olhos gritam sozinhos. É um momento extremamente emotivo e trágico, que faz com que o observador sinta por Ivan e seu filho. Mas não são apenas os olhos do czar que transmitem um sentimento de desespero. O rosto de seu filho, visto de perfil, é cortante, pois ele já parece estra morto na cena; ainda assim, é possível observar uma gota de lágrima que escorre pelo seu nariz, como se não conseguisse acreditar naquilo que seu próprio pai fez a ele. Além disso, é possível ver que não há qualquer questionamento sobre a culpa do monarca russo, pois é possível observar logo ao chão, na parte inferior da tela, o seu cajado com o qual matou seu filho.

Repin consegue dirigir o olhar do observador com clareza, e, ao dar atenção aos olhos e fazer escolhas de como dirigir a emoção transmitida, sua pintura acaba sendo ainda mais impactante, inclusive até demais para alguns observadores. A pintura já sofreu dois ataques: um em 1913, quando um russo que dizia querer “parar a violência” fez três cortes, especialmente no rosto de Ivan (fig. 4). Em 2018, muito recentemente, houve outro ataque, que desta vez danificou partes do corpo do filho do czar (fig. 5), e houve uma restauração custosa para que o quadro pudesse recuperar seu brilho horrendo na Galeria Tretyakov. Segundo a pessoa que perpetuou este último ataque, ele o fez por “ter bebido vodka e que algo tomou conta de sua cabeça”. Alguns jornais russos declararam que o homem havia feito isto por considerar que a pintura era não verdadeira e que Ivan nunca matou seu filho. Este quadro sempre foi sensível, desde quando foi feito, em 1885. O czar Alexandre III, o penúltimo antes da revolução Russa, havia proibido que o quadro fosse exposto, em especial pela tensão que a família Romanov passava depois da morte de seu pai, Alexandre II, em um ataque. Agora vem a pergunta, meu caro leitor: “Entendi os processos de Repin, como ele conseguiu capturar nos olhos de Ivan e de seu filho todo o momento dramático da cena, mas existe algo mais? Por qual motivo as pessoas se incomodam tanto com este quadro?”.

Este não é o primeiro caso de vandalismo em uma obra de arte. Em toda a História da Arte existem casos, como o Guernica, de Picasso. Ainda assim, a tela de Repin sofre ataques específicos de grupos muito ligados a ideologias e visões políticas do que é a Rússia. Em outra parte, é possível observar que se trata também de um quadro que desperta uma emoção muito grande, especialmente pelo tema que ele trata. É quase impossível não fazer uma comparação com a obras que retratam Abraão e Isaque. No velho testamento, Deus pede a Abraão que, como prova de sua adoração, sacrifique seu filho. Abraão é um fiel e corre com seu filho para sacrificá-lo; quase no ato, é impedido por um anjo enviado por Deus. Ainda assim, a capacidade de um pai matar seu filho é algo assustador. Isto é transmitido na pintura conservada na Gellerie dele Ufizzi (fig. 6), do mestre do chiaroscuro, Caravaggio. O mestre italiano pintou o tema mostrando exatamente o momento em que Abraão está prestes a sacrificar seu filho, que grita de forma pavorosa, e neste momento o anjo chega para impedi-lo. A dramaticidade utilizada pelo artista italiano, que usa os contrastes de sombra e luz e as expressões de desespero do filho e da rigidez do pai, conseguem transmitir um apelo emocional enorme para o espectador, que era o objetivo da pintura religiosa de Caravaggio. Outro conto bíblico que deve ter alimentado a imaginação de Repin é da história do filho pródigo, em especial o quadro de Rembrandt sobre o tema, que já se encontrava no Museu Hermitage, em São Petersburgo (fig. 7). Esta pintura do mestre holandês mostra a cena em que o pai abraça o filho, que está ajoelhado. O abraço aqui não é de desespero, mas sim de um caloroso acolhimento, como na história bíblica. Repin usa a cena como referência, mas a transforma em uma imagem infernal. Se toda a composição do artista holandês é para demonstrar a paz entre pai e filho, que finalmente se reencontram, o artista russo faz do abraço um momento de desespero, de arrependimento: é o conto do “pai assassino arrependido”. Este tom religioso tirado do velho e do novo testamento é sensível e causa uma consternação, pois se existe uma figura política que deve representar os ideais religiosos é o monarca. O que acontece quando um monarca se torna um filicida, um paranoico, alguém que mata seu próprio povo?

A obra de Repin é uma ponte entre uma Rússia antiga, czarista, e uma Rússia moderna, que se encontra com a Rússia pós-Revolução de 1917. Essa imagem do Czar como alguém que mantém o controle do Estado e de sua família a partir da brutalidade e da desconfiança não será algo novo na História do país. O modernizador do Estado russo no século XVIII, Pedro, o Grande, também será um czar implacável e tão brutal quanto Ivan. Pedro também irá se opor aos Boyardos, executando diversos deles. Também será um conquistador, derrotando os suecos na batalha de Poltava. Ele também será cruel com seu filho, Alexei. Este não concordava com certas escolhas de Pedro e acabou por fugir da Rússia. Na cabeça do czar, isso era uma humilhação e colocava em risco o prestígio russo na Europa. Quando seu filho voltou, apesar de prometer seu retorno em segurança, Alexei foi posto em prisão, torturado e executado a mando de seu próprio pai. Este evento é retratado por um dos colegas de Repin, Nikolai Ge, também conservado na Galeria Tretyakov (fig. 8). A cena não é tão impactante quanto a de Repin, mas também tem no olhar de Pedro a sua força. Pedro olha para seu herdeiro, que está cabisbaixo, e logo é possível perceber pelo olhar furioso do czar que a sentença será brutal. “Não possível! Outro czar também fez o mesmo com o seu filho? Como isso possível? É desumano!”. Ao que respondo que sim, caro leitor, essas tragédias dentro do próprio seio da monarquia russa são muito impactantes; se acreditava que Ivan era o “terrível”, não queira ver a biografia de Pedro, o “grande”. Com mais este caso na História russa, não é de se estranhar que muitos comentem, especialmente sobre a pintura de Ivan e de Pedro, que eles nada mais são do que a figura do Estado russo, que condena os seus próprios filhos. Apesar de parecidos em tema e em momento histórico, é necessário lembrar que Pedro não chora, não chega a mostrar qualquer remorso por seu filho; ele nem titubeou ao lhe conferir a pena máxima. Já seu antepassado, Ivan, é aqui representado como alguém que, quando percebeu o que havia feito, desabou. O czar terrível sempre rondará a História russa, seja na pintura ou no cinema.

No penúltimo ano da Segunda Guerra, em 1944, a História de Ivan será resgatada na União Soviética comanda por Stálin pelo diretor Sergei Einsenstein como um símbolo nacional de luta contra os nazistas. As expressões do czar serão belamente interpretadas por Nikolay Cherkasov (fig. 9). As expressões, o jogo de luz do e a apropriação de uma estética teatral dramática transmitem a sensação de loucura e paranoia de Ivan. Apesar do grande apreço de Stálin pela figura de Ivan como símbolo nacional, além da grande recepção da primeira parte do filme, centrada na juventude do czar, a segunda parte só verá a luz em 1958, e a terceira nunca será exibida, devido à morte do diretor russo em 1948. Além disso, a segunda e terceira partes começaram a sofrer complicações, pois logo ficou claro que a figura paranoica e tirânica do czar se aproximava de forma “muito suspeita” de Stálin, o que seria impensável em seu regime. Por isso, se acredita que a terceira parte chegou a ser destruída. Nunca chegou as telas, portanto, a representação de Ivan matando seu filho. Talvez a frase mais tirânica de Ivan na segunda parte do filme de Einsenstein seja quando o czar descobre a conspiração e diz: “De agora em diante eu serei o que você diz que eu sou! Eu serei terrível!”. A partir deste momento, a natureza violenta e brutal do czar se desperta contra seus inimigos no filme. Havia diversas preocupações com a segunda parte, segundo Maurren Pierre. Uma das inquietações por parte dos burocratas do governo e colegas do diretor era que os oprichniki pareciam “fascistas do século XVI” e Ivan seria mais um “Grande Inquisidor” do que um líder de verdade. Em algum momento de 1946, foi mostrado a Stálin o filme, o que, segundo as fontes de Pierre, “o desagradou muito”. Veja, caro leitor, como a imagem de Ivan assombra aqueles que a veem como um espelho. Hoje temos noção de como o período stalinista na União Soviética foi marcado por perseguições, o uso da polícia para reprimir, entre outras questões complexas. A imagem do czar terrível desperta aquela assombrosa comparação com a imagem de um tirano ditatorial. Mas ainda que o filme tenha sido contraditório, o quadro de Repin é tão impactante quanto por ser a centelha inicial de toda uma discussão em torno do Estado russo: o que acontece quando aquele que deveria ser seu pai, aquele que deveria lhe proteger dos perigos, se torna o perigo?

Essa não é uma pergunta apenas para os russos, mas para todo o mundo. Por qual motivo não seria? Temos diversos exemplos ao redor do globo sobre como Estado, seja na figura de um líder ou de uma junta, acaba se tornando um pesadelo para os que estão sob sua tutela. Quantos países já não foram castigados por seus “próprios Ivans”? A diferença na reflexão da pintura do mestre russo é que este quer explorar os sentimentos de Ivan. Como o czar reagiu ao ser confrontado com seu próprio feito? Como o pai que deveria proteger o filho se sentiu ao ver o sangue se esvaindo de seu corpo? Este é o motivo, caro leitor, pelo qual os produtores da série Chernobyl mostraram este quadro no palácio do governo da União Soviética. Mesmo depois desse desastre, ainda ocorrem prisões, movimentos repressivos, escondem-se informações vitais e espalha-se desinformação sobre o perigo que espreita. Talvez a intenção sempre tenha sido mostrar o governo soviético antes do momento da percepção do erro crasso. Quando eles perceberem seus erros, já será tarde demais, assim como foi para Ivan.

Ainda possuo várias perguntas sobre esta pintura, mas uma em especial ainda me inquieta. Será possível que Repin ficou sabendo em algum momento de Saturno devorando o seu filho, de Goya? Será que ele viu alguma foto deste quadro? Acredito que o artista russo se conectaria muito bem com o artista espanhol.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer ao leitor, que chegou até aqui e se propôs a ler um pouco de minhas reflexões. Sempre à Revista Guaru, por mais uma vez abrir o espaço para meus experimentos. E, claro, ao meu amigo e companheiro de escrita, Lucas Carvalho, que, através das nossas conversas, sempre me ajuda a idealizar os temas para escrever.

Imagens

Figura 1. Ilia Efímovitch Repin. Ivan, o Terrível, e o Seu Filho Ivan em 16 de Novembro de 1581 (Иван Грозный и сын его Иван 16 ноября 1581 года), 1885. Óleo sobre tela, 199,5 × 254 cm. Galeria Tretyakov, Moscou.

Disponível em:

https://www.tretyakovgallery.ru/collection/ivan-groznyy-i-syn-ego-ivan-16-noyabrya-1581-goda/

Figura 2. Ilia Efímovitch Repin. Autorretrato, 1878. Óleo sobre tela, 69.5 × 49.6 cm. Museu Estatal Russo, São Petersburgo.

Disponível em:

http://www.art-catalog.ru/picture.php?id_picture=7121

Figura 3. Anônimo. Parsuna de Ivan, o Terrível (Ivan Vasiljevitj den Grusomme), c. final do século XVI e início do século XVII. Tempera sobre madeira, 36 x 34 cm. Nationalmuseets, Copenhagen.

Disponível em:

https://samlinger.natmus.dk/mom/object/49923

Figura 4. Foto do ataque de 1913.

Figura 5. Foto do ataque de 2018.

Figura 6. Michelangelo Merisi, detto il Caravaggio. Sacrifício de Isaque (Sacrificio di Isacco), c. 1603. Óleo sobre tela, 104 x 135 cm. Gallerie degli Ufizzi, Firenze.

Disponível em:

https://www.uffizi.it/opere/sacrificio-di-isacco

Figura 7. Rembrandt ou estúdio de Rembrandt. Retorno do filho pródigo (Return of the prodigal son), c. 1660. Óleo sobre tela, 262 x 205 cm. Museu Hermitage (Госуда́рственный Эрмита́ж), São Petersburgo.

Disponível em:

https://rkd.nl/en/explore/images/40809

Figura 8. Nikolai Ge. Pedro I interroga czarevich Alexei Petrovich em Peterhof (Петр I допрашивает царевича Алексея Петровича в Петергофе), 1871. Óleo sobre tela, 134.8 х 172.7. Galeria Tretyakov, Moscou.

Disponível em:

https://www.tretyakovgallery.ru/collection/petr-i-doprashivaet-tsarevicha-alekseya-petrovicha-v-petergofe/

Figura 9. Detalhe do filme Ivan, o Terrível, dirigido por Sergei Enseinstein

Bibliografia:


ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista; Tradução Renato Prelorentzou. São Paulo: Editora Unesp, 2016.

MADARIAGA, Isabel de. Ivan the Terrible: First Tsar of Russia. Bury St Edmunds: St Edmundsbury Press Ltd, 2005.

PIERRE, Maureen. The Cult of Ivan the Terrible in Stalin’s Russia. New York: St. Martin’s Press LLC Scholarly and Reference Division and Palgrave Publishers Ltd, 2001.

YANOV, Alexander. The Origins of Autocracy: Ivan the Terrible in Russian History. Tradução Stephen Dunn. Los Angeles: University of California Press, 1981.

Vídeos

Ivan, the Terrible. Direção de Sergei Eiseinstein. Moscou. Mosfilm. 1944 (Parte I) e 1958 (Parte II). (Parte I: 99 minutos; parte II: 88 minutos).

“OPEN WIDE, O EARTH” (episódio 3). Chernobyl. Direção: Johan Renck. Produção: Craig Mazin, Carolyn Strauss, Jane Featherstone. Reino Unido e Estados Unidos: HBO e Sky Antlantic, 2019.

*Colaborador externo