Sapatos de Açucar, 2018

Tiago Sant'ana

Os sapatos e as tramas

Por Sergio Carvalho da Fonseca

A cena era a seguinte: um garoto adentra ao palco carregando um caixote de engraxate nas costas. Ele caminha entre duas fileiras de sapatos organizados dos mais surrados aos mais novos, representando as classes sociais. O garoto começa gritando “graxa, senhor” com uma animação inicial, entre os sapatos de classes mais baixas, que vai se esvaindo perante a pressão social dos sapatos mais novos, até quase sussurrar o oferecimento de seu trabalho.

As tramas teatrais, até certo momento da história, eram interpretadas pelos teóricos como um conflito, essencialmente, entre dois personagens. Essa percepção se mostrou equivocada no teatro moderno porque se viu como recorrente e necessária a presença de um terceiro elemento que age como administrador da tensão e, por vezes, foco do conflito. Esse terceiro personagem pode ser um ator, majestosamente exemplificado pela irmã de Blanche Dúbios em A Streetcar Named Desire, ou um ser inanimado, em peça também escrita por Tennesse Williams chamada The Glass Menagerie.

Por meio desse entendimento, o sapato na apresentação do grupo argentino Comuna Baires deve ser compreendido como um objeto que cumpre uma representação de conflito com o jovem ator.

Além de caracterizar certa classe social, o sapato representa a existência dos homens na terra. Em cena, sua ausência no corpo de um ator significa duas possibilidades: um personagem morto ou uma anulação social. Fora do métier teatral, os fãs dos Beatles sabem disso, basta relembrar a icônica capa de Abbey Road na qual Paul McCartney aparecia descalço e o aparecimento de uma das teorias mais absurdas acerca de sua morte e substituição por um sósia. Quanto ao outro significado, não é difícil encontrar em museus de pequenas cidades fotos de famílias humildes, geralmente com ascendência africana, do início do século XX, cujo pai se encontra com um traje completo ou um terno de linho, mas descalço. Um rápido exemplo de uma dessas fotos se assiste no documentário acerca do show, e história dos artistas negros brasileiros, do talentoso Emicida, chamado AmarElo – É tudo pra ontem. É como se a foto dissesse: você pode tirar uma foto, mas continua à margem da sociedade.

No teatro brasileiro, o maior exemplo do sapato numa trama como anulação social está na peça Dois perdidos numa noite suja, de Plínio Marcos. A dramaturgia mostra um conflito entre dois personagens por um par de sapatos. Ambos são carregadores dos produtos do Mercado Municipal Central de São Paulo. Um subemprego que lhes dá o suficiente para pagar a cama de uma pensão e o almoço do dia. A luta psíquica e, por fim, física pelo par de sapatos novos representa a possibilidade de procurar um emprego completamente vestido para mudar de vida, ser alguém, existir como ser humano.

Sapatos de Açucar, 2018

Tiago Sant'ana

O espetacular ator Denzel Washington está produzindo uma série de filmes adaptados das peças do dramaturgo August Wilson. Conhecido como "theater's poet of Black America" escreveu Ma Rainey's Black Bottom, que se tornou o filme traduzido para o português como A Voz Suprema do Blues (2020). O filme trata de uma gravação em estúdio da lendária cantora de blues Ma Rainey. A banda que vai a acompanhar na gravação chega mais cedo para ensaiar e um dos músicos – última intepretação do excelente ator Chadwick Boseman - chega atrasado, porque foi comprar um sapato novo. Essa compra representava a mudança de classe social, criada pela esperança da gravação e do sucesso das composições que ele venderia para o dono do estúdio. Apesar dos conflitos artísticos e amorosos com Ma Rainey parecerem os principais da trama, isto não acontece porque Wilson tem um refinamento em sua escrita que dá razão à sua alcunha. O pianista da banda, chamado Toledo, é o idealista da banda e tem os sapatos velhos e surrados. Conhece todos os discursos dos movimentos negros e os apresenta constantemente nos diálogos com o personagem de Boseman, chamado Levee. A trama principal, então, está tratando do modo como a comunidade afro-americana vai se tornar efetivamente parte da sociedade. A solução que Toledo apresenta é a organização coletiva. A de Levee é o da penetração usando as regras dadas pela sociedade branca. O final da trama provoca uma imensa reflexão. Quando Levee tem seus planos frustrados pelo dono do estúdio, retorna transtornado para a sala de ensaios. Na movimentação dos músicos para recolher suas coisas, após a gravação, Toledo pisa, involuntariamente, no sapato novo de Levee. O final é inesperado, e não será aqui revelado, mas a grande mensagem é a da união, apesar das consequências trágicas, da comunidade afro-americana como única possibilidade de mudança social.

Em termos de motivação à construção da trama, isso remete ao famoso ator brasileiro Paulo Autran, defensor da tese na qual “a arte imita a vida”. Afinal, os sapatos nos presentificam e mostram nossa classe social. Representam o modo como se pisa no mundo e eles continuarão existindo quando não estivermos mais vivos.

No dia 07 de janeiro de 2021 o Brasil alcançou a marca oficial de duzentas mil mortes por COVID-19. Numa proposta poética, o jornal Folha de São Paulo pediu que os parentes das vítimas enviassem as fotos dos pares de sapatos para representar esse grande e absurdo número.

Por este último exemplo o não tão famoso ator e produtor teatral Emilio Gama, enraivecido com a afirmação de Autran, dizia exatamente o contrário, “a vida imita a arte”.

Os exemplos aqui criados parecem mostrar a ligação íntima entre uma frase e outra. Há em ambos os movimentos uma simbiose que revela a importância da arte na vida de todas as pessoas, assim como seria impossível não ter uma visão apurada acerca da vida para a elaboração de uma obra artística.

Uma mobilidade poética entre vida e arte que, no nosso caso, só a força contida num par de sapatos poderia causar.




Arte:


Sapatos de Açucar, 2018

Tiago Sant'ana


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