Roda Viva e suas interpretações

Por Sergio Carvalho da Fonseca

Conta-se que uma peça estava sendo encenada em um dos pequenos países do Leste Europeu quando num determinado momento de um monólogo o público, que sofria nas mãos do ditador chefe daquele país, interpretou as falas representadas pelo ator como o momento vivido por eles. A peça não chegou ao final. O público saiu imediatamente do espetáculo, estabeleceu uma revolução e conseguiu derrubar o governo. É importante esclarecer que a peça não tratava de guerras, revoluções ou governos despóticos. Tudo não passou de uma interpretação coletiva dos fatos irreais e ficcionais, para os reais.

Um dos grandes nomes do violão brasileiro foi Paulinho Nogueira. Diferente de Raphael Rabello, um gênio do violão e da música, que fez interpretações muito particulares com sobreposições de temas musicais totalmente inovadores às músicas de Tom Jobim - num álbum chamado Todos os Tons - Nogueira se dedicou a adaptar as músicas de Chico Buarque, uma representação extremamente competente para o violão. E foi ouvindo sua gravação instrumental de Roda Viva que ressurgiu a pergunta: o que trata a letra dessa canção?

Considera-se, geralmente, inquestionável a ligação dessa letra com o período da ditadura militar. A ponto de, numa montagem que realizei em 2007, da heroica e histórica greve dos doze anos dos Queixadas de Cajamar, utilizar essa canção tocada ao vivo como uma daquelas que compunham o repertório e construíam a atmosfera inicial para o público, referenciando-o à segunda metade da década de 1960. Além disso, basta ler a primeira estrofe da música para chegar a essa ligação entre ditadura e Roda Viva.

Tem dias que a gente se sente

Como quem partiu ou morreu

A gente estancou de repente

Ou foi o mundo então que cresceu

A gente quer ter voz ativa

No nosso mundo mandar

Mas eis que chega a roda viva

E carrega o destino pra lá.

À pretensa metáfora sugerida pela letra alia-se ao fato de o exército ter invadido o teatro Ruth Escobar, durante a apresentação da peça com o título homônimo, e agredir os atores do espetáculo cujo autor era Chico Buarque.

Mas, por vezes, aquilo que se lê ou ouve parece distante de uma conciliação e, ao ouvir Paulinho Nogueira, algo reavivou a busca pelo significado dessa letra.

Pesquisando na internet, encontrei firmes companheiros de luta. O site Café com Sociologia foi o primeiro. Nele Cristiano Bodart, doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e Roniel Sampaio-Silva, mestre em Educação pela Universidade Estadual de Rondônia (UNIR), explicam, num artigo de agosto de 2018, que “a expressão ‘Roda viva’ pode ser interpretada como o motor da história, os ciclos históricos proporcionados pelas lutas de classe”.

Minha felicidade ainda foi maior, por me considerar certo na minha ligação histórica entre ditadura militar e Roda Viva, quando encontrei um artigo para a revista EDUCA – Revista Multidisciplinar em Educação, editada em 2019, na qual pude encontrar minha interpretação com a dos seguintes companheiros: Raquel Rosan Christino Gitahy, doutora em Educação pela Universidade do Oeste Paulista e Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul; Artemisa Piai Silva de Fernandez, mestre em Educação pela Escola de Língua Brasileira; Claudia Karina Ladeia Batista, doutora em Direito pela Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul; e Alessandro Martins Prado, mestre em Direito pela Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul. No resumo, do artigo intitulado “Música Roda Viva: Desvendando simbolismos”, lê-se que “O foco central desta análise está nos simbolismos e metáforas utilizadas pelo autor a fim de driblar o contexto político e ditatorial da época”

Porém, para meu desespero, e dos companheiros compartilhantes da mesma interpretação que a minha, se acaso descobrirem isso, na lista de significados para Roda Viva há um vídeo de julho de 2010¹, no qual o próprio autor da música esclarece dois pontos importantes que não vão ao encontro das interpretações acima.

O primeiro é sobre a invasão do teatro Ruth Escobar. O diretor do espetáculo, José Celso Martinez Corrêa, contou a Chico Buarque que os militares, na inteligência que lhes é peculiar, ao invés de descerem as escadas à sala na qual realmente era apresentada uma peça que afrontava diretamente a ditadura militar, e era o alvo do mandado, subiram. Um espaço teatral, para quem o frequenta, pode apresentar mais de uma sala, caso do Teatro Ruth Escobar. Na sala errada, bateram e detiveram os atores da peça Roda Viva que, da mesma forma que a canção, não tinham relação com as críticas realizadas à ditadura militar. E aqui cabe a explicação do autor sobre a peça e a letra da canção.

É conhecido o modo como os fãs da década de 1960 tratavam com um entusiasmo tremendamente exagerado seus ídolos. Os registros visuais das apresentações dos Beatles, da Jovem Guarda e dos Festivais da Canção no Brasil, comprovam isso. Exatamente pelo sucesso alcançado nos festivais, Chico Buarque se viu diversas vezes encurralado pelos fãs e isso lhe acometeu de um tremendo mal estar, como se uma roda de pessoas lhe limitasse as ações. Chico expandiu essa opressão ao show business e escreveu a canção e a peça teatral tratando desse tema. A roda viva era orgânica, real, e nunca uma metáfora ligada ao momento político ou social brasileiro. Convido o leitor a reler o trecho da letra da canção por essa perspectiva, para ver como tudo se encaixa.

Minha interpretação, e dos meus companheiros, se mostrou equivocada porque utilizamos, precipitadamente, o contexto histórico geral no qual Chico Buarque vivia, a ditadura militar, e não seu contexto particular enquanto artista dentro da ditadura militar.

Se a entrevista gravada não existia na época na qual dirigi a peça e elaborei sua atmosfera inicial, eu deveria ter, tão simplesmente, lido a peça para saber do que se tratava. Porém, meus companheiros de interpretação, escreveram seus textos oito anos após a entrevista de Chico.

Talvez devêssemos incorporar mais Paulinho Nogueira, que buscava uma representação perfeita e não tentar uma interpretação magistral como Raphael Rabello, porque isso é para poucos.

Talvez nosso afã em achar elementos para o estopim de uma revolução, como acontecida no Leste Europeu, tenha nos cegado na interpretação. E uma interpretação real da história foi embotada por uma irreal.

Mas uma canção não é só letra, também é música. E é ela que nos afeta de formas distintas e nos causa interpretações infindáveis que escapam ao domínio do compositor.

Afinal, trata-se de arte.