Sangue, fé e filme

Por Danilo Mendes de Oliveira*

O filme Cruzada aborda o período que abrange os momentos anteriores à tomada de Jerusalém por Saladino em 1185 até o início da “Cruzada dos Reis”, em 1189. Como fio condutor do enredo há a trajetória individual do personagem Balian, estrelado por Orlando Bloom.

Balian é um ferreiro que vive no interior da França. Nos primeiros minutos da trama ele se encontra em um processo de luto pelas mortes de sua esposa e filho, até o momento em que se depara com a campanha de Godfrey de Ibelin (Liam Neesom), que revela ser seu pai, e parte em direção à Jerusalém. Inicialmente relutante em participar da luta que Godfrey pretende empreender em Jerusalém, Balian muda de ideia quando percebe que não havia mais nada que o prendesse em sua terra natal. Na cena em questão, Balian assassina um religioso, que o havia provocado descrevendo o estado de sua mulher antes do enterro desta. O ponto de linguagem cinematográfica que marca a cena é o incêndio da própria ferraria onde Balian trabalha, quando o reflexo do fogo joga luz sobre o personagem.

Após várias peripécias (morte de seu pai decorrente de um ferimento de batalha, o encontro com Guy de Lusignan em Messina, a chegada dramática à Terra Santa), Balian acaba conhecendo Jerusalém. E ali se depara com a tensão política envolvendo a cidade, pois Balduíno IV, o rei leproso, mantém-se no poder em meio à cobiça de Guy de Lusignan e Reynald, nobres que não aceitavam a paz entre cristãos e muçulmanos. Nesse ínterim, Balian se envolve com a irmã de Balduíno, Sibylla, que é esposa de Guy de Lusignan.

Os personagens do filme não apresentam muitas camadas de dramaticidade: Balian é o típico homem que tem uma missão a cumprir, no caso proteger o rei Balduíno IV e Jerusalém; Guy de Lusignan se mostra como o político e militar sedento por conquistas, principalmente com uma possível derrota de Saladino, sultão da Síria e do Egito.

Cruzada apresenta momentos mais explosivos em seus últimos trinta minutos, quando as cenas se pautam no combate direto entre cristãos e muçulmanos na ofensiva de Saladino à Jerusalém.

Mas do âmbito histórico, o ponto alto do filme se dá nas interações que ocorrem entre cristãos e muçulmanos em momentos de diálogo, como na cena em que Balduíno IV convence Saladino a não atacar o reino de Kerak, e também no momento em que Balian, após firmar um tratado de paz com Saladino, pergunta a este: “o que Jerusalém vale”? Então recebe a seguinte resposta: “nada”. Saladino caminha, mas se vira e diz: “tudo”. Outro momento que chama a atenção nesta relação entre cristãos e muçulmanos se mostra quando Saladino, ao assumir efetivamente o controle de Jerusalém, levanta o crucifixo caído em uma das salas do palácio principal.

Tal forma de tratar a relação cristãos/muçulmanos se insere em outra das técnicas da linguagem cinematográfica: a de se realizar cenas em que a ação feita quebra com a “ação esperada” em determinado contexto histórico. Isso significa que a “ação esperada” em uma ambientação de Cruzada seria o combate constante entre cristãos e muçulmanos, mas as ações realizadas geram o contraste, pois em vez de um conflito contínuo, há quebras.

Esta maneira de abordagem chama a atenção para uma questão: estaria o diretor Ridley Scott tentando gerar uma quebra com o discurso de homogeneidade da visão ideológica judaico-cristã, criado ao longo do século XX e início do século XXI?  Pois com os conflitos entre israelenses e palestinos após a criação de Israel (1947) e a reação dos Estados Unidos aos ataques contra as torres gêmeas em 2001, a mídia ocidental cria uma imagem característica para os povos islâmicos, através de recortes que enfatizam a questão do terrorismo. Também se associa o Islã como algo presente em civilizações “atrasadas” tecnicamente.

Se a intenção de Ridley Scott é tentar quebrar com essa imagem cristalizada pela mídia ocidental, ele não está sozinho. No filme Zona Verde (2010), de Paul Greengrass, lança-se um questionamento a respeito das reais intenções dos Estados Unidos dentro do Iraque. O personagem Roy Miller (Matt Damon) descobre que não havia armas de destruição em massa no Iraque, isso porque já havia as suspeitas lançadas pela jornalista Lawrie Dayne (Amy Ryan). É emblemático o momento em que ao tentar fazer com que um dos homens procurados pelos Estados Unidos continue vivo, o personagem Miller seja surpreendido pelo assassinato do mesmo por Freddy (Khalid Abdalla), que o diz algo como: “você não conhece o Iraque”. Tanto o filme de Ridley Scott quanto o de Paul Greengrass refletem um momento em que parte do mundo ocidental revê suas posições em relação ao Oriente Médio, mostrando que a homogeneização midiática da imagem do que seja o muçulmano sofre controvérsias, apesar de filmes como Babel (2007) e Guerra ao Terror (2009) ainda demonstrarem um viés conservador em relação ao tema.

Outra questão a ser abordada sobre Cruzada tem a ver com o próprio sentido da guerra. Em uma cena anterior ao ataque definitivo de Saladino, o personagem Balian profere um discurso sobre o que era aquela guerra. Ele dizia que ali aconteceria uma luta não para a defesa do cristianismo ou o rechaçar dos muçulmanos, mas sim pela própria sobrevivência do povo de Jerusalém. No discurso, Balian afirma que aquela guerra não havia sido iniciada pelos que ali estavam, nem pelos que naquele momento poderiam invadir a cidade. A guerra foi iniciada tempos antes.

Então cabe perguntar: seria Balian a consciência sobre a guerra? Mais uma vez o enredo cria uma ligação com os questionamentos do mundo ocidental no século XXI. Pois era exatamente isso que se perguntava nos anos posteriores à Guerra do Iraque de 2003, ou seja, qual o sentido da guerra. Balian, desde que chega aos arredores de Jerusalém demonstra não ter vontade de lutar. Quando há a oportunidade de se casar com Sibylla e assumir uma postura política de liderança como rei, ele também não quer. Balian só se envolve diretamente com a política no momento em que Guy de Lusignan e Reynald são capturados (Reynald é morto por Saladino) e mesmo assim Balian não deseja ter um reino para si.

Guardadas as devidas proporções, não era a primeira vez que o cinema ocidental questionava a guerra. Temos como exemplo disso o filme Capacete de Aço (1951), de Samuel Fuller. A diferença era que este filme abordava uma guerra que os Estados Unidos estavam vivendo, ou seja, a Guerra da Coreia.

Em Capacete de Aço, há uma valorização dos fuzileiros navais americanos, como algumas legendas no filme deixam claro. Mas existe também um questionamento de até onde a guerra pode ir, como por exemplo no momento em que o filme tem como cenário base um templo budista. A primeira frase de um dos militares americanos ao entrar no templo é de que ninguém poderia violar a estátua ou tocar os símbolos religiosos. A música no momento e a tomada da câmera (de baixo para cima) enfatizam a grandeza de Buda e a sacralização do espaço. De forma parecida, no filme Cruzada ao chegar a Jerusalém Balian procura em primeiro lugar o local onde Cristo fora crucificado.

A partir do momento em que o esconderijo dos americanos no templo é descoberto pelas tropas norte-coreanas, em Capacete de Aço, diversos soldados são mortos e partes do templo são destruídas, mas a estátua de Buda permanece intacta. Buda então representa o limite da guerra. De maneira semelhante, Jerusalém não é invadida por Saladino, que na verdade a consegue com a rendição de Balian. As portas de Jerusalém estão destruídas, mas a maior parte de seu interior permanece de pé.

Outro exemplo de filme que questiona o sentido da guerra é Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola. Na obra citada, o questionamento aparece com o personagem Walter Kurtz (Marlon Brando), coronel estadunidense que se rebela contra as forças armadas no Vietnã, refugiando-se no vizinho Camboja. Ao receber a missão de eliminar o coronel, Benjamin Willard (Martin Sheen) aos poucos põe em dúvida o próprio sentido da tarefa depois de ver exemplos de insanidade como o do tenente-coronel Kilgore (Robert Duvall), que tem como preocupação surfar em plena ofensiva militar. Ao encontrar o quartel general do rebelado Kurtz no Camboja e identificar a aura quase sacra criada em torno do coronel, Willard intensifica suas próprias dúvidas. O contato chega a ser quase de admiração por Kurtz. Mas Willard acaba cumprindo sua missão de extermínio, após perceber que Kurtz também estava dominado pela loucura. Mas Kurtz representa uma loucura que ao mesmo tempo é consciência e isso incomoda o sentido da guerra. Como recurso de linguagem cinematográfica, Coppola utiliza um foco de luz que clareia metade dos rostos de Willard e Kurtz.

Kurtz havia abandonado todas as regalias que poderia ter como coronel estadunidense e adotado um estilo de vida simples, em um lugar sem nenhum tipo de conforto. De forma parecida, Balian não quer ser um rei. Ao voltar para seu lar destruído no interior da França, Balian se depara com a passagem da campanha de Ricardo Coração de Leão, rei da Inglaterra, de partida para Jerusalém, naquela que ficaria mais tarde conhecida como “Cruzada dos Reis”. Ao ser interpelado por Ricardo, Balian afirma ser apenas o ferreiro.

Claro que as proporções de comparação entre Cruzada e Apocalypse Now devem ser guardadas, pois o primeiro filme não apresenta a mesma qualidade de recursos de linguagem cinematográfica que o segundo, mesmo porque o estágio do cinema em 2005 não era o mesmo que em 1979. O peso do mercado em cima de Cruzada é muito maior do que em Apocalypse Now. Cenas de conflito bélico acabam chamando atenção pelo status da tecnologia no século XXI, e tal aspecto acaba prevalecendo sobre os recursos mais clássicos do cinema como utilização semântica das cores, da luz, do espaço, da música, entre outros.

Além disso, Cruzada se aproveita do contexto de conflito ideológico entre o mundo judaico-cristão e o mundo islâmico, para lançar luz sobre uma questão milenar, enquanto filmes como Capacete de Aço e Apocalypse Now lançam críticas sobre guerras vivenciadas em seu próprio tempo.

Cruzada é um filme épico do século XXI. Curiosamente, quando comparado em termos semânticos com outros épicos do fim do século XX e início do século XXI, percebe-se que há uma preocupação maior com a historicidade do que com a simples execução das cenas de impacto. Isso, é claro, quando se compara o filme com produções como Tróia ou 300. A produção de Cruzada é, neste sentido, mais discreta do que o normal nas atuais superproduções.

Tal aspecto nos remete a uma questão lançada a Steven Spielberg e outros diretores no documentário Quarto 666 (1982), de Wim Wenders. A questão lançada tinha a ver com o futuro do cinema. Seria o cinema uma arte rumo à extinção? Ali já se sentia o impacto dos interesses comerciais sobre o cinema, que passava a ser visto como uma grande mercadoria, o que faria com que o aspecto artístico entrasse em uma profunda reflexão sobre seus caminhos.

Quando perguntado, Spielberg respondeu que na verdade o cinema não estava para morrer, mas era preciso fazer com que o cinema se adaptasse à nova realidade. Spielberg havia lançado seu clássico Tubarão sete anos antes e já experimentava a nova configuração do cinema. O grande problema era que o grande público queria do cinema algo parecido com a televisão. Uma das questões debatidas no documentário era a do impacto da televisão no cinema (pode-se fazer um comparativo em relação ao século XXI, quando se pensa no impacto da internet sobre a televisão). Com a interferência da televisão no entretenimento, o público queria cada vez mais o estímulo sensorial e menos a sensibilidade artística. O próprio Spielberg, utilizando inclusive o gênero épico, faria muito sucesso comercial nos anos subsequentes, com filmes como A Lista de Schindler e O Resgate do Soldado Ryan, ambos da década de 90.

Ridley Scott, com seu Cruzada, insere-se neste debate sobre a relação do cinema com o binômio arte/mercado. Os filmes épicos talvez sejam aqueles em que mais se percebam estas fronteiras pelas quais o cinema transita.

Para além de se pensar em como os épicos lidam com esta questão, talvez seja apropriada a reflexão sobre como a própria história é tratada na atualidade pelos grandes meios de comunicação. A história se tornou um excelente produto midiático, com um número considerável de séries e filmes sendo produzidos nos últimos anos para o grande público. Porém, quando se pensa neste âmbito, faz-se necessária a indagação sobre o sentido deste interesse pela história. Tal atenção se dá pelo objetivo de conhecer/problematizar a história ou ocorre por uma simples válvula de escape para alguma época que pode ser simplesmente reinventada, devido ao distanciamento temporal?

Quando se formulou a questão anterior em termos historiográficos, como feito por François Dosse em sua História em Migalhas, gerou-se uma grande polêmica, pois não havia como negar a contribuição de historiadores como Jacques Le Goff no estudo da história medieval ou Henri Pirenne no estudo das cidades do mesmo período, além de inumeráveis historiadores que já contribuíram para o estudo das épocas mais remotas. Mas e quando se faz a mesma questão em termos da história no cinema?

Filmes de história produzidos com a preocupação em relação ao conhecimento histórico continuam sendo realizados. Podem ser citados alguns exemplos mesmo no século XXI: O Último Rei da Escócia (2006), Adeus Lênin (2003), Diários de Motocicleta (2004). A grande questão é saber até que ponto um filme pode fugir dos interesses comerciais e mergulhar mais fundo no plano estritamente artístico.

Outra importante questão também deve ser colocada: o cinema deve ter o compromisso de ser totalmente fidedigno para com a História? Pois se se considera que o cinema seja ficção, enquanto a História seja algo mais próximo da ciência, qual é o limite que se pode cobrar da sétima arte?

O que pode ser dito apenas a título provisório é que a arte não tem a necessidade de se prender a parâmetros de normatização científicos. A criação é algo que surge da inventividade do artista, que ao mesmo tempo sofre influências de seu próprio tempo histórico. Porém é importante dizer que há uma tradição dentro da própria arte, como Carlo Ginzburg demonstra através de seu livro Medo, reverência, terror, com base no estudo da arte na política. Fórmulas artísticas podem ser repetidas em determinadas épocas. Como no caso da propaganda de Lorde Kitchener, um militar inglês, que aparecia em cartazes da Primeira Guerra Mundial com o dedo apontado na direção de quem olhava a imagem, postura que seria imitada por outras nações ainda na mesma guerra e de forma subsequente ao longo do século XX, sempre de forma a “convocar” o leitor para algo, seja um alistamento militar ou a compra de determinada mercadoria.

Então o que se pode esperar da arte talvez seja o encontro de referências que remontem à tradição da própria arte. O incômodo de se pensar que as necessidades do mercado estejam ditando a forma como o cinema seja produzido, talvez se dê pelo fato de que os signos do próprio cinema estejam sendo modificados ou até mesmo esquecidos. No entanto, como se pode ver através do filme Cruzada, ainda se enxerga elementos que remontam a uma tradição dentro dos filmes épicos de guerra, mesmo quando se fala em uma superprodução.

Assim, quando se pensa na relação entre História e cinema, pode se dizer que o épico representa um papel de jogar luz tanto sobre o conhecimento histórico quanto sobre o estatuto da sétima arte. Portanto, o épico se configura como processo de diálogo entre História e cinema.


*colaborador externo