Sobre Nelson Freire, memória e música

Por Leonardo Camargo da Silva

Os povos tradicionais da Grécia arcaica elaboraram continuamente o tema da efemeridade da vida humana. Uma das passagens mais famosas, sem dúvida, está contida no canto VI da Ilíada, de Homero, quando Glauco - que combate pelos troianos - encontra o possante Diomedes no campo de batalha, e responde à ameaça de seu oponente:

Assim como a linhagem das folhas, assim é a dos homens.

Às folhas, atira-as o vento ao chão; mas a floresta no seu viço

faz nascer outras, quando sobrevém a estação da primavera:

assim nasce uma geração de homens; e outra deixa de existir.

(HOMERO. Ilíada. Canto VI, 146-149. Trad. Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin/Companhia das Letras, 2013).


O ser humano é o ephḗmeros, “o que está sobre (eph-) o dia (hēméra)”. Passar é próprio de nossa condição, realidade gritante e corrosiva de nossas certezas, experiência assombrosa e inevitável com a qual nos debatemos dia sim, e dia também. No entanto, também é próprio de nossa estulta condição viver como se fôssemos eternos, ou como se a eternidade nos viesse como um prêmio pelo modo como vivemos.

Em meio ao clamor da refrega, Homero projeta dois excelentes homens que, em vez de deitarem o bronze um contra o outro, cantam os feitos dos heróis que vieram antes deles, e recordam que é impossível escapar ao dia da morte, mas sempre é possível não morrer para sempre. Tal é a função da poesia no mundo grego arcaico: fazer memória e dar glória, isto é, cantar a excelência dos nossos heróis manifestada em seus feitos, de tal maneira que mesmo mortos “eles são para sempre” (expressão corrente na poesia homérica para referir-se aos deuses), levados como folhas pelo vento ainda são vida para a floresta, golpeados pelo bronze afiado da morte superam o silêncio do esquecimento.

Logo cedo, na manhã do dia 1º de novembro, fui tomado pela notícia do falecimento do pianista Nelson Freire, aos 77 anos. Meio sem pensar, abri o Spotify, fui aos álbuns favoritos, e procurei a sua delicada interpretação de Orfeu e Eurídice, melodia da ópera de Gluck, arranjada por Sgambatti. Ouvi-a pelo menos quatro vezes durante o café, como que na tentativa de compreender que folha era essa que agora o vento lançara ao chão já tão cheio de folhas. Uma coisa levou à outra e, quando dei por mim, já havia ouvido o Concerto para Piano n. 3, e a Suíte n. 2 para Dois Pianos, de Rachmaninov, interpretada por Freire e sua amiga de longa data, a pianista argentina Martha Argerich.

Entre uma peça e outra, deixei-me atravessar pela emoção da perda do nosso reconhecido virtuose. Foi quando lembrei-me das cenas iniciais do documentário Nelson Freire, de João Moreira Salles, 2003, que registram o encerramento de um concerto com orquestra. Freire faz a vênia diante do público, agradecendo os aplausos, vai para trás do palco e faz uma pausa; retorna à frente, como a etiqueta do concerto pede, saúda a assembleia, novamente vai para trás do palco, toma água e pede um cigarro. O regente apressa-se e diz: “Agora você vai dar um docinho de coco a eles”, indicando o costumeiro bis após a apresentação de um solista ou concertista. Freire responde: “Eu não vou tocar nada”; “Um docinho de coco”, pede o regente. “Um cigarrinho”, negocia o pianista.

Ao contrário do histrionismo romântico - esse modo super-afetado que constitui nosso imaginário acerca da figura do músico, com os cabelos desgrenhados, os olhos esbugalhados, a aura divina ou o pacto demoníaco em torno do talento -, Nelson Freire mantinha a elegância e o comedimento próprios ao músico ciente de sua real tarefa: dar a ouvir a música. Se era um cacoete o seu virtuosismo ao piano, Freire não atribuía isso à algum talento, mas - como afirma a João Moreira Salles -, à solidão do estudo e do trabalho, companheira constante de profissão.

O leitor, talvez tão romântico como o autor dessas linhas, poderia objetar que poucos são os meninos capazes de sentar ao piano com quatro anos de idade e tocar Chopin. O pianista mineiro responderia com tranquilidade que, depois de dois anos de sua aparição nos veículos de imprensa como “prodígio precoce” - tendo saído de Boa Esperança (MG) e mudado para o Rio de Janeiro, em busca de instrução musical -, o prodígio do menino agora com 6 anos acabava sem um professor que lhe ensinasse. Ao lançar o seu primeiro LP aos 12 anos, com peças de Chopin, o adolescente não se esqueceria do pai que fez a família mudar para o Rio de Janeiro, nem de Nise Obino, sua professora de piano.

Distante de qualquer estrelato vulgar e espalhafatoso, Nelson Freire mantinha a leveza e a simplicidade de seu espírito mineiro. “O músico não é tudo isso. [...] Fazer música não é para se mostrar ou competição. A música já basta.”, diz o pianista a João Moreira Salles. O músico reservado - que nunca dava entrevistas -, trazia o sorriso simpático, o olhar compenetrado, o andar calmo e poucas palavras… tratava-se de não atrair os holofotes para si, mas para a potência avassaladora de Rachmaninov, para a sonoridade imagética de Debussy, para a intensidade dramática de Chopin, para a destreza de Liszt, para a revolução eloquente e silenciosa de Beethoven.

Se fosse indicar algo ao leitor a fim de apreciar o virtuosismo à serviço da sensibilidade de Nelson Freire, indicaria o seu Chopin em The Nocturnes (2010), também o seu Liszt em Liszt: Harmonies du Soir (2011) e, por fim, a sua belíssima interpretação do Concerto para Piano n. 5 (2014), de Beethoven, junto da prestigiada Gewandhaus. No entanto, se o pianista mineiro costumava arrebatar com o repertório proposto para o concerto, também é verdade que com terna sensibilidade tocava os ouvintes com suas escolhas mais íntimas apresentadas sempre no famigerado bis. Em seu último álbum, Encores (2019), lançado por ocasião de seu aniversário de 75 anos e 70 anos de carreira musical, Nelson Freire reuniu essas expressões profundas de seu trabalho.

A primeira peça do álbum - já a mencionamos anteriormente -, é a melodia de Orfeu e Eurídice, que segundo o documentário de João Moreira Salles, figurava sempre no repertório do pianista. Segundo a tradição poética grega e latina, os amantes Orfeu e Eurídice foram separados pela morte precoce da jovem, vítima do veneno de uma cobra. Devastado e inconsolável, Orfeu toma sua lira e desce ao mundo dos mortos a fim de pedir a Hades e Perséfone que lhe devolvam sua amada. O deleite gerado pela canção de Orfeu, a qual recorda a relação de interdependência entre o amor e a vida, faz com que Hades e Perséfone atendam ao pedido do amante sofredor.

Recriando o tema, o que ouvimos na abertura do último álbum de Nelson Freire é essa melodia para a canção de Orfeu em busca de sua amada, no delicado e sensível arranjo de Giovanni Sgambatti para piano, feito a partir da ópera de Christoph Gluck. Orfeu e Eurídice secreta a esperança de eternidade por meio da poesia, da canção, da música. Nas mãos ágeis e nos dedos leves de Nelson Freire, num momento triste e obscuro de nossa história, nós brasileiros temos aqui o elogio do triunfo do amor sobre a morte, da sensibilidade sobre a indiferença, da memória sobre o esquecimento. Não há o que dizer. A música já basta.