John Carpenter e a máscara de Michael Myers: a essência do medo em Halloween e na cultura visual mundial

Por Francisco Fontanesi*

Nada mais justo que dedicar este texto ao homem que nos assustou tanto, o Diretor John Carpenter e a Debra Hill. “Obrigado” pelos pesadelos, mas também pelas reflexões.


Bom, caro leitor, o Halloween chegou: ao menos a data comemorativa oficial do folclore americano que inundou uma série de países mundo afora. O que é tido como algo puramente americano pode ser encontrado em uma série de variações sociais, em seus rituais culturais ligados ao sobrenatural e, mais importante, ao assustador. Mas não é do feriado americano que quero escrever e conversar contigo, caro leitor, mas sim do clássico filme John Carpenter´s Halloween (1978) e de suas releituras mais recentes, de 2018 e 2021. Na verdade, eu gostaria de lhes apresentar o que é para mim o elemento mais assustador introduzido por Carpenter e sua maravilhosa equipe de design: A Máscara Branca (figura 1) do assassino protagonista dos filmes, Michael Myers.

Antes de mergulhar neste “pesadelo”, é bom lhe dizer, caro leitor, que eu não serei muito rigoroso com linhas temporais, referências artísticas ou com uma bibliografia vasta e extensa. Primeiro por não ser um especialista em cinema e, com tantos ótimos críticos no nosso país e inúmeros lá de fora, não seria eu a me atrever em lhes dizer como se pode interpretar uma obra cinematográfica. Com certeza deve haver uma série de excelentes estudiosos que lhe dariam uma melhor e mais completa visão sobre a obra como um todo. O meu segundo ponto e, na verdade, minha verdadeira motivação, é a minha fascinação com este elemento específico do personagem slasher de Carpenter e Debra Hill. Na verdade, caro leitor, se você é fã de filmes de terror, que ótimo para você, pois eu sou uma negação para este tipo de filme. Eu tinha pesadelos recorrentes quando criança com um simples comercial na televisão (estou ficando velho, meus caros!) e, conforme fui crescendo, este medo de filmes de terror continuou. Até hoje tenho o costume de fechar os olhos em várias partes desses filmes quando sou obrigado a vê-los. Entretanto, e independente do gênero, quando um filme te impacta não interessa o quanto ele está distante da sua lista: ele fica com você. Neste caso, de uma forma um pouco ruim.

Nunca me esqueço da primeira vez em que assisti o filme original de 1978. Eu e um amigo de faculdade (Bruno) estávamos com uma fixação por filmes clássicos americanos. Ficamos meses assistindo a uma série de filmes e, claro, comendo pizza e fumando cigarros, sendo que deveríamos estar estudando para as nossas provas de Teoria da História na faculdade – um programa saudável para universitários saudáveis. Eis que meu amigo um dia me diz, conversando pelo telefone: “Cara, eu acabei de assistir Halloween de 1978 e, de verdade, assista”.

Fiquei muito receoso com a proposta. Eu devia ter uns vinte anos e já tinha tido minha carga de filmes, mas ainda evitava qualquer tipo de filme de terror, ainda mais por ver, naquela época, o gênero como algo extremamente deselegante e de segunda classe, nada comparado às grandes tragédias de Dostoievsky ou à Divina Comédia de Dante. Mas aí logo pensei: “Bom, se Dante passa pelo inferno, exagerando nas descrições de seus cantos sobre monstros, torturas e o próprio diabo, por qual motivo não dar uma chance para este filme?” – e que surpresa eu tive. Mesmo com toda a nossa tecnologia atual e com a capacidade de fazer efeitos especiais de primeira linha e outros elementos que foram se aprimorando, o filme de Carpenter e Hill me deixou com dois sentimentos muitos fortes. Primeiro, parecia que eu tinha acabado de ver toda a origem do gênero de terror dos filmes americanos de uma só vez. Além disso, fiquei impressionado com a qualidade da filmagem, do cuidado com a figura do assassino, de não o revelar à toa, mas, ao mesmo tempo, colocar o espectador em seu ponto de vista, criando uma tensão ainda mais brutal. A trilha sonora então, nem se fala. Foi algo de tirar o folego, ainda mais pensando que o próprio diretor do filme foi quem compôs aquele tema maldito.

O segundo ponto, é claro, foi o assassino em si. O perigo de Michael Myers é evidente, e a capacidade do diretor de colocá-lo em situações muito propícias, não necessariamente para criar oportunidades de jump scares baratos, mas de criar ainda mais tensão, com a personagem Laurie Strode não compreendendo de onde ele vem, mesmo quando é possível observá-lo na penumbra ou à distância. Você deve estar se perguntando: “Tudo bem, Francisco, entendi seu ponto. Sim! Por esses motivos o filme se tornou um clássico. E já entendi que você é bem medroso e ainda assim adorou o filme. Mas, já que existe um filme com tantas qualidades, por qual motivo falar da máscara?”.

Caro leitor, é verdade. Poderíamos falar da trilha sonora, da direção de fotografia, da própria Panavision usada para capturar as imagens de Michael e a qualidade da equipe de filmagem. Ainda assim, para mim, não existe nada mais assustador neste filme que A Máscara Branca. Ela me transmite algumas sensações e reflexões estranhas, contraditórias e que me arrepiam a coluna. Um dos pesadelos mais assustadores que eu já tive foi quando um rosto bizarro aparecia no escuro, quase como uma caveira, e vinha até mim de forma ultrarrápida. Quando vi A Máscara Branca, especialmente com os olhos pretos e sem vida, não havia mais como eu separar as coisas. O pesadelo havia se tornado realidade! Bem, realidade pelo menos em um filme de mais de quarenta anos.

A história da máscara em si é bizarra: um figurino barato que nada mais era que a “cópia” do rosto de William Shatner, quando este fazia seu personagem no famoso seriado Star Trek. Segundo Tommy Lee Wallace, o design responsável pelo feito, ele raspou as sobrancelhas, aumentou o tamanho do buraco dos olhos e a pintou de branco, além de escurecer o cabelo, chegando na figura que o personagem dos filmes possui hoje. Ela se tornou uma peça poderosa, icônica e que seria imitada por uma série de outros filmes de terror – vide Sexta-feira 13. Entretanto, o que eu acredito, caro leitor, é que ela possuiu esse apelo visual exatamente pelo motivo de que o design sabia o quanto máscaras podem ter um significado complexo nas culturas humanas ao redor do globo. Ao olhar para aqueles olhos vazios, aquela cara pálida e estranha, especialmente em dois extremos, à distância ou de close-up, parece que nossa mente automaticamente conjura uma série sensações de insegurança e desconforto – elas não se originaram com A Máscara Branca: contudo, esta alcança a “essência primordial” presente em diversas outras obras de artes espalhadas pelo mundo.

A palavra Grotesco na História da Arte e da Literatura possui origens diferentes do que poderíamos pensar, inclusive quando a conjuramos para definir uma peça de filme de terror. O Grotesco, em seu início no Renascimento, era muito ligado ao artista Rafael Sanzio e era usado como motivo decorativo em afrescos, procurando imitar certos padrões florais que os antigos romanos faziam. Entretanto, foi a partir daí que Rafael e outros artistas, especialmente os Maneiristas, começaram a acrescentar nesses padrões rostos de criaturas mitológicas bizarras e outras formas não muito convencionais. Conforme o tempo foi passando, o Grotesco realmente se tornou uma definição de estilo na Arte próxima do que temos hoje: algo feio, deformado, monstruoso, mas, em especial, fora do comum e dos padrões do Renascimento. Foi impossível não pensar, para mim, uma relação da obra de Ridolfo del Ghirlandaio (filho do famoso Domenico Ghrilandaio), conhecida como La Monaca, hoje conservada na Galleria Ufizzi, em Florença (figura 2).

Na verdade, a obra se divide em duas: primeiro, o retrato da chamada Donna Velata, de uma senhora italiana típica do período do Renascimento Italiano, pintada com um véu branco e uma roupa preta, em uma posição de meio perfil. Entretanto, é a outra peça que mais me interessa. Trata-se de um painel de madeira, que provavelmente era ligado ao retrato para protegê-lo. Seu nome é claro, Coperta di ritratto con grottesche, que se traduz em algo como “cobertura de retrato com grotesco” (Figura 3). Esse painel de madeira possui exatamente aquilo que definiu o Grotesco em seus primórdios: uma forma decorativa com padrões de folhas e alguns animais exóticos. Entretanto, é exatamente o elemento novo que aparece no centro do painel de madeira que mais chama a atenção: uma máscara sem quase nenhuma expressão e com os olhos negros, acompanhada de uma frase em latim: “SVA CVIQVE PERSONA”.

Quando se olha muito tempo para essa máscara, é possível ver que ela é completamente sem emoções, não transmite qualquer sensação de “humanidade”, com o fundo dos olhos bem negros e seus lábios imóveis. Não consegui deixar de notar a proximidade da intenção do que o diretor de Halloween queria com A Máscara Branca: exatamente esta sensação de que não existia nada além dela, que ela fosse a “alma” do próprio Michael, mas uma alma vazia, sombria e que só se importa em cometer assassinatos. É uma máscara com traços humanos, mas sem alma, sem feições ou emoções que possam distinguir um rosto humano “autêntico”, com olhos e expressões. Entretanto, a expressão “SVA CVIQVE PERSONA” parece deixar ainda mais poderoso esse conceito que Ridolfo Ghirlandaio traz. A tradução do latim nunca é muito boa, mas seria algo como “para cada um, sua própria máscara”. Ridolfo quer deixar claro seu talento, o que ele pode fazer, assim como o seu pai o fez tantas vezes: pintar um retrato que exprima a mistura entre as expressões naturais da pessoa, assim como sua imagem idealizada, ou seja, sua máscara. Mas a máscara também transmite o que somos, não se engane, e esse é o ponto mais divertido deste exercício de Ridolfo Ghirlandaio – especialmente ao compará-lo com A Máscara Branca de Michael. Ela parece esconder quem ele é, em um primeiro momento, mas, na verdade, revela o que há por trás dela, talvez até mais do que o próprio rosto natural do psicótico assassino. Ele é “O Mal”. Sem emoções, sem sentimentos, uma incógnita para qualquer um, inclusive seu psiquiatra. Mas a máscara também transmite a ameaça completa, sua aparência fantasmagórica e seu instinto assassino.

Comecei então a pensar em uma série de máscaras ou representações destas que tivessem também esse intuito ameaçador e que transmitisse também personalidade, junto ao rosto da própria pessoa. Não conseguia parar de pensar nas referências do Japão Feudal, o que pode parecer óbvio. Para o cinema americano, contudo, essas referências ainda não eram necessariamente óbvias ao final dos anos 1970. Estavam, no mínimo, voltando a penetrar nesse cinema. Uma das máscaras mais interessantes talvez seja a do próprio teatro Nôh japonês, tal como conservada no Metropolitan Museum of Art (figura 4). Sua branquitude exagerada, a deformação do rosto e das sobrancelhas, assim como o cabelo preto, remetem imediatamente à peça de Michael Myers, embora já seja possível observar aqui um sorriso, algo que remete a algum sentimento. Entretanto, essas máscaras japonesas eram usadas para representar fantasmas que voltavam à vida e, muitas vezes, causavam problemas no plano dos vivos. Essa coisa fantasmagórica com certeza é um elemento presente na Máscara de Michael, que muitas vezes é descrito no filme como um “fantasma”, uma “aparição”, uma força “sobrenatural”.

Muitas das máscaras do teatro Nôh também eram utilizadas para representar almas atormentadas de samurais, muitas vezes traídos. Logo pensei: “Bom, está aí outra figura ameaçadora!”. Os samurais em si são ameaçadores pelas suas técnicas de combate e pelas suas representações no cinema japonês, especialmente o de Kurosawa. Existe um elemento extremamente belo e chamativo na cultura samurai que, contudo, pode ao mesmo tempo ser bem assustador: as armaduras. Elas possuem vários nomes, mas um dos mais comuns é gusoku. As gusoku possuem uma série de detalhes, placas e pedaços, cada um com um nome, função e origem específica. Entretanto, na parte do rosto, existe um elemento muito importante, o Kabuto. Ele é basicamente um capacete que tem a função de proteger a cabeça do guerreiro nipônico. É uma das partes mais características e mais trabalhadas da gusoku, com cristas que se abrem em formas de dragão, espadas e outras imagens das mais variadas. Um dos exemplos mais interessantes é o de uma dessas armaduras no Metropolitan Museum datada do século XVIII (figura 5). A gusoku é toda colorada e cheia de apetrechos, parece até ser de outro mundo. No kabuto desta armadura do MET (figura 6) é possível observar um detalhe muito interessante, até mesmo bizarro: uma máscara.

Elas eram conhecidas como menpô e, apesar de serem quase que puramente ornamentais, possuíam uma função clara, que era a de assustar. Especialmente em campo de batalha, os samurais usavam suas armaduras para refletir “quem eram”, seu status, suas origens, assim como as suas habilidades. Tal como um tipo de inseto que usa a cor para avisar aos outros de que é perigoso e não devem se aproximar, os menpô tinham uma função parecida – “Afaste-se de mim, respeite meu status ou sofra as consequências!”. Apesar de parecer super expressivo por causa da boca aberta, ela costuma ser contida, especialmente na cor amarronzada que segue o padrão de tons um pouco mais sóbrios. O bigode também faz parte dessa configuração, embora no mais das vezes seja mais um símbolo de status do que de intimidação, como no caso de um menpô do século XVIII, conservado no Tokyo Fuji Art Museum (figura 7), em que é possível ver o exagero do bigode e do cavanhaque.

Entretanto, existem outros exemplos de gusoku que são tão interessantes quanto; um deles é a armadura conservada no Royal Trust Collection (figura 8). Essa armadura é especial, pois foi dada como um presente diplomático para o rei inglês, James I. Ela é extremamente delicada e trabalhada; entretanto, segundo os especialistas em conservação da armadura, em um vídeo do canal do Royal Trust, “o intuito dela é que pudesse ser usada em combate, caso o rei quisesse”. Tudo nessa armadura transmite decoração, mas sua função vai além. E, claro, seu menpô é ainda mais assustador que os outros aqui mencionados, sem qualquer bigode e escuro, com uma cor amarronzada e envernizada (Figura 9). Ainda assim, um dos exemplos mais interessantes que mostram como o menpô poderia servir como uma ferramenta estética amedrontadora, que tira a humanidade do indivíduo, é um kabuto e menpô vermelhos conservados na Royal Armouries, datados do século XVI (Figura 10). A foto disponível no site do museu inglês especializado em armaduras faz com que o menpô, mesmo sem ser usado por ninguém, se torne ainda mais assustador, com apenas a boca, o nariz e o olhos, assim como A Máscara de Myers, negros e vazios.

Não é à toa que a cultura japonesa terá sua própria gama de entidades no cinema de terror. O samurai, contudo, parece ter algo peculiar, um instinto assassino que se traduz em seu menpô e no kabuto. Samurais podiam simplesmente matar camponeses caso “sentissem” que não lhes deram o devido respeito. Especialmente nos filmes, isso é retratado exageradamente, com diversas cenas de samurais sem dó nem piedade, que com um golpe cortam a cabeça de uma pessoa qualquer, como em um filme de terror. O temperamento dos samurais e slashers parece o mesmo, por vezes. Basta lembrar da terrível cena de um dos filmes mais recentes de Martin Scorcese, Silêncio (2017), na qual um samurai aparece pelas costas de um prisioneiro e, em um golpe, o decapita sem dó nem piedade, despertando um desespero seguido de um coro de gritos e choros agonizantes; movimento não muito diferente do assassino de Carpenter, a propósito, especialmente nas releituras de 2018 e 2021.

O Japão e a cultura “assassina” dos samurais pode fazer parte da carga simbólica da Máscara Branca. É muito interessante pensar, nesse sentido, nas releituras, pois a deformidade e o desgaste são elementos que fazem realmente lembrar certas obras não necessariamente óbvias. Uma delas é a cabeça de bronze do rei macedônio Demétrio I Poliorcetes, que se encontra conservada no Museo Nacional del Prado, em Madrid (figura 11). Apesar de ser um bronze da Antiguidade Helenística e, diferente do menpô samurai, não conter um significado tão denso, o retrato de bronze pode ser, sim, pensado como um tipo de “espelho” do que acontece com Michael durante os dois últimos filmes. Além de sua máscara branca estar velha e desbotada depois de tantos anos, ela é chamuscada e queimada, dando um ar ainda mais desumano a ela e ao assassino de Halloween. O Bronze de Demétrio, apesar de ser feito para ser solene e respeitoso, comemora e retrata um guerreiro pela vida toda, que participou de uma boa parte de matanças no mundo Helenístico, pós-Alexandre, o Grande. Seu bronze hoje se encontra amassado, sem o resto do corpo e apenas com a cabeça. O amassado se encontra especialmente em seus olhos vazios, o que deforma seu rosto. Mais interessante é a falta de expressões emocionais do rosto. Isso é algo muito característico de retratos oficiais da Arte Grega Antiga. É raríssimo, senão impossível, encontrar um retrato com algum tipo de emoção ou expressão mais profunda no rosto. Junto com os amassados no rosto, o bronze se parece muito com a Máscara Branca de Myers; até na antiguidade, portanto, é possível fazer um paralelo entre esse rosto que “não é mais humano”, essa “máscara escolhida”.

É necessário voltar ainda mais à nossa tradição de Arte ocidental e observar uma incrível pintura, que pode possuir uma relação interessantíssima com a máscara usada por Myers: a pintura do mestre Peter Brueghel, o Velho, chamada o Triunfo da Morte, conservada no Museo del Prado (figura 12). Pintor do século XVI, vem de uma tradição bem diferente daquela dos renascentistas italianos e, em especial, Ridolfo Ghirlandaio (aquele da máscara grotesca que havia comentado no começo). A primeira questão a se observar em Brueghel é que o artista dos Países Baixos provavelmente obteve um contato muito grande com a Reforma Protestante e as lutas de religião que aconteceriam em sua terra natal entre o governo monárquico católico da família Habsburgo e seus conterrâneos, que haviam abraçado a Reforma e tomado a família de Orange como líderes desse movimento anti-espanhol, anti-habsburgo e anti-católico. Essas lutas foram brutais e duraram por séculos na região, o que deixou sua cicatriz, inclusive na cabeça dos artistas da região.

Se há algo a dizer sobre o quadro de Brueghel, é que realmente não existe um título tão bem escolhido para transmitir o que acontece na obra. A primeira coisa que é possível perceber ao observar este retrato é o exército de esqueletos espalhado por todos os lugares, alguns deles extremamente bizarros. Vestem armaduras, montam cavalos, carregam armas, entoam cânticos e, mais importante, estão caçando os vivos. Existem cenas das mais variadas e violentas espalhadas pelo quadro: execuções com espadas por decapitação, execuções com as ceifas e cenas das mais grotescas, como o corte de pescoços com pequenas adagas. A cenas são tão brutais que deixariam muitos diretores de filmes de terror embaraçados. Ou então se identificariam de imediato com elas: “Nossa, adoraria reproduzir isso na telona grande”. As pessoas até tentam escapar ao seu destino, mas estão fadadas a morrer pelas mãos dos mortos. Aqueles que tentam barganhar com ouro e joias, como o imperador que se encontra no canto inferior esquerdo, apenas é zombado por uma das caveiras, que mostra a ele a ampulheta, como que dizendo: “Não interessa sua coroa ou riquezas, não existe barganha conosco. A sua hora chegou, seu pilantrinha”. Pessoas tentam se esconder, fugir, mas é inócuo. Esse é um tipo de pintura que remete a uma tradição existente na Idade Média, a Totentanz, ou “dança da morte”. Seu intuito era demonstrar, através do visual, a inevitabilidade da morte, usando elementos grotescos e assustadores, especialmente esqueletos que, muitas vezes, são mostrados “dançando com os vivos”. Mas existe também a tentativa de lutar contra o exército de esqueletos. No canto inferior esquerdo, é possível ver um homem se vestindo de uma forma extremamente flamboyant, com uma camisa azul clara enfeitada de brocados e sua calça branca e amarela toda enfeitada. Ao seu lado, já existe um companheiro caído, com o mesmo tipo de roupas, mas em cor vermelha e verde. Esses são nada mais nada menos que a representação de alguns dos melhores e mais brutais mercenários do período. Muitos deles de origem alemã, se diferenciavam pelo seu profissionalismo inovador para o período, em especial no uso não apenas de espadas gigantes, mas também de um novo tipo de formação militar, o “Pike and Shot”, ou lanças e tiros, que dominaria o estilo de guerra Europeu até a Guerra dos Trinta Anos. Apesar de serem muito profissionais – acredite, leitor –, eles eram conhecidos por duas características: sua forma extremamente flamboyant de se vestir, como é possível observar no retrato do príncipe alemão protestante e senhor da Saxônia no início século XVI, Herzog Heinrich der Fromme (figura 13), pintado por outro artista que também vinha de uma tradição bem diferente de Ghirlandaio, o alemão Lucas Cranach, o Velho.

Seu tipo de vestimenta, toda exagerada, dourada e vermelha, cheia de brocados, segurando uma espada longa, é típica dos Landsknecht. Muitos desses mercenários alemães são descritos por um temperamento complicado – um dia, um Landsknecht pode viver como um príncipe e, no dia seguinte, viver como um completo morador de rua, destituído de tudo o que havia ganhado durante seu serviço, pois havia gastado tudo de uma vez. E aqui entramos no segundo ponto acerca desses mercenários: sua violência e disparate com a população civil. Eram não só tidos como brutos, mas eram mercenários inescrupulosos que não tinham qualquer problema em saquear as cidades e vilarejos sem dó nem piedade dos habitantes da região. Inclusive, estes mercenários foram responsáveis por um dos saques mais brutais da História do cristianismo: o Saque de Roma de 1527. Os mercenários alemães ficaram meses saqueando a cidade, com relatos de mortes de mulheres e crianças, além de execuções aleatórias, mesmo depois que as pessoas lhes entregavam tudo o que tinham. Eles haviam se tornado, de certa forma, “a morte” para os romanos, sem escrúpulos ou piedade. E como muitos eram protestantes, seu ódio pelos católicos de Roma dava uma “desculpa” para agir dessa maneira. Nesses dias, a morte triunfou em Roma. No quadro de Brueghel, no entanto, nem os mercenários mais brutais e mais bem preparados do período têm chance contra a morte. Agora você deve estar se perguntando, caro leitor: “Poxa, Francisco, muito interessante este quadro brutal de Brueghel e a ligação com os mercenários Landsknecht. É possível entender essa violência toda presente no quadro e fazer um paralelo com Myers, mas e a máscara?”.

É aqui que lhe digo, caro leitor, para observarmos com um pouco mais de atenção este lado inferior direito do quadro do mestre dos Países Baixos. Enquanto a cena de luta dos Landsknecht se desenrola, logo mais à direita da cena uma figura me chamou a atenção, e foi a partir dela, na verdade, que fui pensando este textinho: logo perto de um jogo de cartas, é possível ver uma figura vestida com uma túnica amarela, recolhendo algum tipo de balde com algo que só consigo identificar como dois recipientes para líquidos. Entretanto, o que é mais interessante é o que a figura está usando: uma máscara! (figura 14). Esta máscara é um pouco mais colorida, com as bochechas rosadas e contendo um tom amarelado no geral. Um leve sorriso é possível de ser observado, mas nada muito expressivo, e os olhos, escuros e impossíveis de ser ver, criam uma sensação ainda mais estranha para essa figura. Quando se observa mais de perto, é possível identificar que não é um humano de máscara, mas uma das caveiras travando mais uma peça e levando os outros para o seu “destino”.

Quando vi essa figura e depois me atentei ao tema do quadro, não pude deixar de pensar na máscara de Michael Myers e o último filme da franquia, lançado recentemente, neste outubro de 2021, onde o slasher se torna realmente “o ceifador”, inclusive em números (sem spoilers!). Mais uma vez, aquilo que parece esconder a figura da morte em um primeiro momento, na verdade está revelando e se fundido com o seu usuário, criando uma espécie de “simbiose simbólica”, onde um alimenta o outro. A máscara não esconde, mas revela, especialmente o que há por baixo dela. Existem outras obras de artistas dos Países Baixos, como o nosso querido Hieronymus Bosch, que tem uma vasta obra preservada no Museo del Prado, o mesmo onde se encontra o quadro de Brueghel. Seu tríptico chamado O Carro de Feno (imagem 15) é, assim como a obra de conterrâneo, um tipo de estudo sobre a moralidade, pecado e mortalidade, mas usando uma série de elementos ultrassimbólicos que beiram o grotesco. No tríptico direito, é possível observar a imagem de uma outra figura bizarra (figura 16): ela veste um capuz preto, toca uma corneta preta e, ainda mais bizarro, está segurando um corpo humano de cabeça para baixo, todo eviscerado na parte do peito, com as tripas para fora. E observe, caro leitor, o rosto: é quase como se a figura usasse uma máscara verde, e, mais uma vez, sem os olhos, apenas uma fonte preta sem fim. Ainda que essa figura seja extremamente interessante para a nossa reflexão, não é possível afirmar que é uma máscara – com certeza, porém, Bosch fez questão de deixá-la o mais sinistra e desumanizada possível, lembrando quase um carrasco. Às vezes tenho vontade conhecer Carpenter, Hill e sua equipe para perguntar: “Vocês por um acaso já foram ao Museo del Prado? Já viram essas obras?”.

Veja, leitor, como A Máscara Branca de Michael Myers pode levantar uma série de questões e reflexões das mais interessantes. Não é possível afirmar que ninguém do set, diretores, designers ou outro membro da produção de Halloween de 1978 tenha ido ao Prado, ou ao MET, ou a Royal Collection e a Royal Armouries ou à Galleria degli Ufizzi; sobretudo tendo em vista ser um outro período na nossa história, em que viajar para outro país não era nada prático, ainda mais para a equipe de um “filme B”. Catálogos também seriam bem difíceis, a não ser que eles tivessem contato com tudo isso durante a faculdade, o que não é uma garantia (boa parte da equipe do filme nem tinha chegado até a faculdade ainda, de tão jovens que eram!). O máximo que eles poderiam ter feito era ir até o MET e tentar achar os menpô samurais, as máscaras de teatro Nôh. Seria necessário um tipo de entrevista com a equipe para compreender suas referências na época, se é que tinham alguma.

Com os filmes novos de 2018 e 2021, no entanto, muita coisa mudou. A internet fez com que os museus descarregassem fotos de suas obras online, permitindo consultas de alta resolução e, muitas vezes, com um texto de apoio de um especialista curador. Entretanto, talvez eu esteja até subestimando a equipe do período e a força que eles deram ao seu personagem de terror com A Máscara Branca – pois é muito interessante pensar que estou fazendo essas conexões porque elas já existiam previamente. O filme Halloween me despertou essa vontade de compreender mais o que é a máscara e como elas são usadas na arte, se era possível encontrar essas características de medo, terror, incômodo, falta de expressões e sentimentos na História da Arte. Também é necessário lembrar, caro leitor, uma última coisa: em 1977, um ano antes do lançamento de Halloween, havia saído outro filme que usaria o mesmo elemento da máscara para deixar a sua audiência com péssimas vibrações e medo do vilão: Star Wars.

Não há nada mais icônico do que a máscara de Darth Vader (figura 17). O vilão robótico, trajando uma roupa negra, não deixou de causar impacto, especialmente por sua máscara e por sua forma característica de respirar, aspectos que serão ressignificados e utilizados por Carpenter em Michael Myers em 1978. Na verdade, apesar de as máscaras de ambos servirem a propósitos diferentes na trama de cada filme, elas têm semelhanças simbólicas muito fortes. Em especial, a ideia de que revelam muito mais o que está por trás delas: são partes essenciais desses personagens – um deles, inclusive, não pode retirá-la, ou sua respiração fica impossível. É muito interessante pensar como esses dois personagens andam juntos nos cinemas, inclusive nas releituras recentes e em suas possíveis referências. Se A Máscara Branca de Michael pode ter traços simbólicos no menpô japonês, não há dúvidas de que a A Máscara Negra de Darth Vader é um Kabuto completo. Entretanto, o bizarro e o incomodo sensorial são extremamente mais exagerados na Máscara Branca, que faz Myers realmente parecer um ser sobrenatural que representa a morte e a maldade. É engraçado que, assim como Michael Myers evolui para um tipo de entidade que não pode ser parada de tão forte e brutal que é, quase cirúrgica, Darth Vader também terá seu momento no filme Rogue One: A Star Wars Story, de 2016. Sempre foi muito criticado o fato de que o vilão, apesar de imponente, nunca ter usado seu completo potencial. Bem, não apenas o diretor dá a Vader um poder brutal, cirúrgico e sem sentimentos na última cena em que participa de Rogue One (figura 18), como também nos brinda com uma aparição digna de filme de terror, na qual, em um primeiro momento, só ouvimos seu respirar no completo escuro, para, depois que a luz de seu sabre vermelho ilumina o local, ocorrer um verdadeiro massacre na nave, digno de uma sequência de Halloween. Neste momento, só consigo imaginar os dois como a morte encarnada e inescapável, o espírito maligno dos antigos samurais e as suas máscaras menpô, como demônios sem necessariamente um alvo, apenas destruindo pela sua própria natureza. Suas máscaras nada mais são do que eles mesmo.

Caro leitor, lhe deixo com essa reflexão para este dia de Halloween. Não tenho como lhe agradecer pela paciência. Espero que essa experiência tenha sido divertida, e um pouco assustadora ao mesmo tempo. Gostaria de agradecer mais uma vez ao meu companheiro de escrita e amigo para toda hora, Lucas. E, claro, também à revista Guaru, cujos editores são tão bons comigo e fazem questão de não usar nenhuma máscara para comigo.

E uma última coisa: antes de dormir, tranquem as portas! Nunca se sabe o mascarado que pode querer te aterrorizar. Nunca se sabe quando o presidente e seus ministros vão aparecer do nada querendo fazer mais uma “contagem de corpos”.

Imagens

Figura 1

Máscara de Michael Myers usada no Primeiro filme de 1978.

Figura 2

Atribuído à Ridolfo del Ghirlandaio

Donna Velata, Detta la Monaca, c. 1510

Óleo sobre madeira, 65×48 cm

Galleria degli Uffizi, Firenze.

Figura 3

Atribuído à Ridolfo del Ghirlandaio

Coperta di ritratto con grottesche, c.1510.

olio su távola, 73×50,3 cm.

Galleria Degli Uffizi, Firenze.

Figura 4

Anônimo

Ko-omote Mask for a Noh Drama, Século XVIII.

Máscara de madeira cipreste pintada, 14 cm x 21.6 cm.

Metropolitan Museum of Art, New York.

Link: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/45501

Figura 5

Helmet signed by Bamen Tomotsugu

Armor (Gusoku), Século XVIII.

Iron, lacquer, copper-gold alloy (shakudō), silver, silk, horse hair, ivory, 148.8 x 47.6 cm.

Metropolitan Museum of Art, New York.

Link: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/24975

Figura 6

Armor (Gusoku), Século XVIII.

Figura 7

Anônimo

Guarda Facial (Shirohige Ressei-menpo), Século XVIII.

Ferro, laca, couro, seda, cobre, 33,0 × 27,0 × 17,0cm.

Tokyo Fuji Art Museum.

Link: https://www.fujibi.or.jp/our-collection/profile-of-works.html?work_id=607

Figura 8

Iwai Yozaemon

Armour (dōmaru), também conhecida como “The king James I´ s amour”, c. 1580 - 1610

Iron, gilt-copper alloy, shakudō, lacquer, silk, horsehair, deerskin, 161.0 × 72.0 × 70.5 cm.

Royal Armouries (Leeds), London (sob guarda da Royal Trust Collection).

Link: https://www.rct.uk/collection/71611/armour-domaru

Figura 9

Armour (dōmaru), também conhecida como “The king James I´s amour”, c. 1580 – 1610. (detalhe)

Figura 10

Anônimo

Armour (tosei gusoku), 1571-1599.

Red lacquered, plate gold lacquered, 850mm x 400mm x 300mm.

Royal Armouries, London.

Link: https://collections.royalarmouries.org/object/rac-object-37067.html

Figura 11

TALLER HELENÍSTICO

Demétrio I Poliorcetes, 307 a.C. - 300 a.C.

Bronze e, 45 x 35 cm.

Museo Nacional del Prado, Madrid.

Link:

https://www.museodelprado.es/coleccion/obra-de-arte/demetrio-i-poliorcetes/56e2bd91-856c-4e22-9052-008b4cecdbe7

Figura 12

Pieter Brueghel, el Viejo

El triunfo de la Muerte, 1562 - 1563.

Óleo sobre madeira, 117 x 162 cm.

Museo Nacional del Prado, Madrid.

Link:

https://www.museodelprado.es/coleccion/obra-de-arte/el-triunfo-de-la-muerte/d3d82b0b-9bf2-4082-ab04-66ed53196ccc

Figura 13

Lucas Cranach, der Ältere

Herzog Heinrich der Fromme, 1514.

Madeira transferida para Tela. Óleo sobre tela, 184,5 x 83 cm.

Staatliche Kunstsammlungen Dresden.

Link: https://skd-online-collection.skd.museum/Details/Index/246875

Figura 14

El triunfo de la Muerte, 1562 - 1563. (detalhe)

Figura 15

Hieronymus Bosch

Tríptico del carro de heno, 1512 - 1515.

Óleo sobre madeira, 147,1 cm x 224,3 cm.

Museo Nacional del Prado, Madrid.

Link:

https://www.museodelprado.es/coleccion/obra-de-arte/triptico-del-carro-de-heno/7673843a-d2b6-497a-ac80-16242b36c3ce

Figura 16

Tríptico del carro de heno, 1512 – 1515. (detalhe)

Figura 17

Detalhe de Darth Vader, na cena de Star Wars Episódio IV: A New Hope, 1977

Dirigido por George Lucas

Todos os direitos autorais e de reprodução reservados a Lucas Film e a The Walt Disney Company

Figura 18

Detalhe do filme Rogue One: A Star Wars Story, 2016

Dirigido por Gareth Edwards

Todos os direitos autorais e de reprodução reservados a Lucas Film e a The Walt Disney Company

Referências e Vídeos:

Sobre a História de Halloween. Entrevista do site omelete com John Carpenter e Jason Blum:

https://www.youtube.com/watch?v=oMjWsvhrp4o&ab_channel=omeleteve

Vídeo do canal Entreplanos sobre os filmes de “slasher”:

https://www.youtube.com/watch?v=SEJF2ZSdANw&t=216s&ab_channel=EntrePlanos

Gusoku da Royal Trust Collection, ou “The King James I´s Armour”:

https://www.youtube.com/watch?v=nhUqZpUI6d4&ab_channel=RoyalCollectionTrust

Vídeo da Royal Armouries explicando as armaduras samurais:

https://www.youtube.com/watch?v=msVBFXg0Cj0&ab_channel=RoyalArmouries

Video sobre os Landsknecht:

https://www.youtube.com/watch?v=0gUOSVm2b9E&ab_channel=SandRhomanHistory

Video sobre o Saque de Roma de 1527:

https://www.youtube.com/watch?v=8QNXmPCY3jo&ab_channel=SandRhomanHistory

Comentários sobre O triunfo da morte, de Peter Brueghel, pelos especialistas do Museo del Prado:

https://www.youtube.com/watch?v=S_nswb0Mh14&ab_channel=MuseoNacionaldelPrado

Restauração de O Triunfo da Morte:

https://www.youtube.com/watch?v=XAXkq9wXWmI&ab_channel=MuseoNacionaldelPrado

Seção especial do site do MET sobre uma coleção do museu americano, contento apenas de máscaras:

https://www.metmuseum.org/art/collection/search#!?q=Masks&perPage=20&searchField=All&sortBy=Relevance&offset=0&pageSize=0

*colaborador externo