Segunda Carta, Mahler

Por Thiago Andrade*

Fui apresentado a Deus, querido amigo, e foi Mahler quem me conduziu pelo coração até Ele! Só o pôde fazer porque ele O encontrou, na meditação silenciosa perante a Natureza; nas recordações de sua infância e na agudeza de sua sensibilidade. Caminhou até Ele e depois retornou com seu testemunho, dando-lhe o nome de “Sinfonia número 3”, em seis relatos: “chega o verão”, “o que me dizem as flores do campo”, “o que me dizem os animais da floresta”, “o que me dizem os homens”, “o que me dizem os anjos” e “o que me diz o amor”. Eu apenas trocaria, modestamente e sem intenções de profanação, os ditos “me dizem” por “me disseram”, porém o profeta é ele e não eu, e querer realizar alterações nesse assunto é correr demasiado risco.

Quando saí da sala de concerto, sentia que algo transbordava em mim. Era como se eu fosse um com tudo a minha volta... será isso o que os místicos indianos e cristãos vivenciaram em seus êxtasis, uma união com o Absoluto? Não entendo bem desse assunto, apenas li a respeito em alguns livros esporádicos, mas, aqui, o que houve durante a audição foi puro sentir, e um sentir acompanhado de saber. Não à toa ele é conhecido como o “compositor-filósofo”.

François, que me acompanhou nesse dia, disse que, diferentemente das suas duas primeiras sinfonias, nessa não há a presença da morte, tão característica em suas obras, mas sim a presença da vida, “a voz da Natureza em todo lugar, em todos os movimentos, em cada nota, em cada silêncio”. Mas estranhamente, ainda assim, senti que em vários momentos lá estava a luta, para “baixo” a morte, para “cima” a vida; uma força que conserva e outra que cria, uma que estagna e outra que inova... pulsões? Conceitos? Abstrações? Ideias advindas de alguma mente sã ou perturbada? Clarões enviados pelos deuses para administrarmos nossas vidas?

Quando saímos, disse para François (que estava com um sorriso de contentamento, feliz por ter me convencido a ir ao concerto): “não, não, querido amigo, a morte está, sim, presente, mas ela foi integrada, acolhida, não mais como estranha, estrangeira, mas, sim, amiga, companheira. Não é que ela não se fez presente, mas Mahler a apresentou a nós com outra face, a divina. Um mel na borda do copo a fim de adoçar o remédio? Talvez...”. François sorriu para mim e fomos para casa quietos, preenchidos sob a tutela da luz enigmática da lua.

Assim que cheguei em casa fui direto para minha escrivaninha, mantendo apenas a luz amarelada do abajur acesa. Meu olhar se perdeu, longe, distante de onde estava... ainda ouvia as melodias da sinfonia, seu canto! O tema inicial, com as trompas... um chamado? Um chamamento? A anunciação de algo grande, grandioso? Uma mensagem que ele sentia que deveria passar para todos? No fim, o que nos diz o amor? A síntese...

Depois de alguns instantes, comecei a escrever essa carta para você. Na sequência, um pequeno poema:

Aonde estão as provas,

As certezas, os verdadeiros relatos?

Devo apenas crer, acreditar,

Sem que ninguém possa evidenciar?

Ora, não sejas apressado!

Medite bem em todos eles,

Em cada relato.

E então encontrarás

O viajante diante do amor,

Com os tímpanos a marcar

Seu andar,

Com muito labor.

Ouvistes seu último soar?

Cessou sua marcha,

O fim de seu caminho.

Estás agora convencido?

Entre as suas duas últimas notas,

Soou por fim a mais aguda,

Seu grito de paz, cheio de ternura.

Tornando-as então, Una.

Teu amigo de sempre,

Herman

30 de junho de 1912


Trata-se do segundo capítulo, cedido especialmente à Revista Guaru, do romance-epistolar do autor intitulado Fragmentos de Uma Correspondência, em vias de publicação.

*Colaborador externo.