Tripálium: memórias do trabalho e da tortura durante a ditadura militar em um retrato biográfico
Por Stela Cristina de Godoi*
Introdução
Desde o golpe parlamentar de 2016, o Brasil agoniza no derretimento trágico de suas instituições democráticas. Com a pandemia do COVID-19 e a gestão mórbida do capitão incivilizado que preside o país desde 2018, a etnocêntrica “utopia da terra sem males”, ou sua versão desenvolvimentista do “país do futuro”, se transformou numa trágica distopia: a morte é banalizada, a fome coletiva é instrumentalizada e o golpe civil-militar de 1964 é comemorado. O espetáculo em cartaz parece não ter fim. Será o teatro mórbido dos “ridículos tiranos da América da contradição”? Que fazer quando o horizonte parece tão nublado? Não há uma resposta unívoca para nosso impasse, mas nesse momento aposto as fichas nas vozes que vem do passado. Vozes da nossa memória esquecida ou silenciada.
No final da primeira década deste século dediquei-me com afinco à disciplina escutatória. Escutei muitas histórias do trabalho e da tortura. A narrativa operária de meados do século XX parece ser a manifestação perfeita do significado etimológico de trabalho, como “tripálium”. Ser levado para as sessões de tortura nos porões do DOPS com o “macacão ainda molhado de suor” do trabalho é a expressão máxima do “tripalium”. Uma mistura sombria de trabalho e tortura.
A disciplina escutatória desenvolvida a partir da metodologia da História Oral me acompanhou ao longo da pesquisa que resultou na dissertação “A roça e o aço: as experiências e as resistências operárias no Brasil moderno (1954 a 1964)”¹. Uma atenta reflexão acerca da relação pesquisado/pesquisador foi o primeiro passo que antecedeu a realização deste estudo. Minha identidade como pesquisadora não foi ocultada. Ao invés de me travestir de fantasias positivistas, propus um objetivo em comum entre nós. A construção dessa causa partilhada foi designada por Ecléa Bosi, na obra “Memória e Sociedade”, como “comunidade de destino”. A comunidade de destino não é um fato ou método dado, é um fazer-se que se constrói pelo modo como você e o outro trabalham esse objetivo comum. Trabalham; porque memória não é sonho. O fenômeno da memória implica também em trabalho àqueles que relembram.
Assim, devo sinceros agradecimentos a todos aqueles que diretamente me ajudaram a conceber e executar essa pesquisa. Aos narradores que escutei, qualquer palavra seria insuficiente. Mais de dez anos depois, muitos deles já se foram. Guardo a gravação de suas memórias sobre o trabalho – e o tripálium – ao lado de minhas próprias memórias. Lembranças das tardes em que tomamos café e caminhamos juntos nos bairros em que encerraram seus caminhos. Através do relato biográfico que fiz – e pude entregar em vida ao caríssimo João Chile – espero poder devolver alguma nitidez e poesia ao nosso horizonte nublado.
Antes de contar a história de nosso saudoso operário-militante-poeta, segue a descrição brevíssima dos quadros sociais no qual o personagem se insere.
Os quadros sociais da memória operária em meados do século XX
No Brasil do século XX, ao longo do período de 1954 a 1964, o cenário nacional foi palco de pelo menos três crises – política, social e econômica – marcadas pelo suicídio de Getúlio Vargas em 1954, pela renúncia de Jânio Quadros em 1961 e pelo golpe civil-militar de 1964. No decorrer destes anos, num processo que se inaugurou em contextos anteriores, é possível observar a formação de uma classe operária no Brasil, em virtude da ampliação do parque industrial nacional. No sudeste brasileiro, sobretudo, na região metropolitana de São Paulo, inúmeras indústrias multinacionais da cadeia produtiva do automóvel se instalaram nas cidades do ABC paulista, atraídas por um mercado consumidor com demanda reprimida, por amplos incentivos alfandegários e creditícios dados pelo governo brasileiro, bem como, por uma volumosa oferta de mão-de-obra nas cidades abastecida pelo êxodo rural. No processo de urbanização e industrialização, nos moldes fordistas/tayloristas, inseridos no contexto de modernização da nação, os sindicatos operários e os Partidos disputaram os rumos desta classe trabalhadora, a qual se formou como um novo mosaico étnico/regional, composto por migrantes nacionais vindos das zonas rurais do país e por imigrantes estrangeiros.
Assim, mediante o entendimento da importância deste contexto inicial de formação da classe operária para os rumos do Brasil, por meio da história oral e da memória, propôs-se um estudo acerca das experiências e das estratégias de resistência de quatorze ex-metalúrgicos, ao longo do processo de re-enraizamento vivenciado com a migração para as cidades de São Paulo e ABC paulista, no interior do mundo do trabalho de 1954 a 1964. A análise das memórias dos sujeitos desta história permitiu perceber que esse processo de ressocialização vivido pelo migrante rural, esteve marcado tanto pela sujeição aos valores dominantes da sociedade de destino, bem como pelas pequenas recusas à modernidade brasileira.
Fincando raízes em terra nova, esses migrantes-operários depararam-se com as engrenagens da fábrica fordista/taylorista instalada no Brasil, na vivência de um medo difícil de definir e de um tempo que se tornou produto raro. No interior dessas relações sociais marcadas pelo trabalho, os depoentes deste estudo, concebidos como sujeitos ativos sob as condições objetivas dadas, criaram práticas sociais de resistência às formas de opressão vivenciadas no chão de fábrica, e fora dele. Levando-se em consideração não só o cenário macro-estrutural, mas, principalmente, a dinâmica subjetiva e simbólica do trabalho, a análise das memórias de ex-operários, que se empregaram em diferentes indústrias metalúrgicas da cadeia produtiva de automóveis, lançaram luzes sobre as relações conflitivas da vida cotidiana no mundo moderno, evidenciando uma contínua tentativa destes sujeitos de transpor a condição de máquinas de trabalho.
O retrato da trajetória de João Chile
Figura 1: Imagem representando o Estado de São Paulo e a trajetória territorial de João Chile, entrevistado por Godoi (2007) [fonte do mapa: Ibge-Cidades; arte: apud Godoi (2007)]
O senhor João é brasileiro, nascido numa localidade rural chamada Nova Granada, próxima a cidade de São José do Rio Preto, estado de São Paulo, em 5 de setembro de 1931, tendo 75 anos na ocasião da gravação desse depoimento, realizado em sua residência, em um bairro da zona leste de São Paulo, em 2006.
Seus pais eram espanhóis e tiveram treze filhos, tendo conseguido criar apenas três, já que os demais faleceram ainda crianças. A família não tinha terra própria, de modo que as lembranças sobre esse tempo de vida na roça estão marcadas pela privação material. Entretanto, esse período de sua vida é revivido também com nostalgia e boas recordações. Um personagem crucial na história de vida de João foi um ancião negro, chamado Rogato, com o qual viveu a magia da experiência transmitida por meio da narrativa. Rogato, intitulado pelo depoente como sendo um “historiador oral”, residia em Ouríndiuva, localidade onde João morou depois de sair de Nova Granada.
Aos sete anos de idade João ficou órfão de mãe e, dois anos depois perdeu também o pai. Nessa circunstância, o depoente ficou sob os cuidados da irmã mais velha, já casada. Seu cunhado é relembrado com muito carinho já que, segundo João: “(...) [ele] se preocupava muito comigo, gostava muito de mim e pagou uma moça para me dar aula. Mas eu estudei com ela três meses. Depois ela foi embora para o sertão e eu fiquei na mão. Mas esses dois meses foi o suficiente para eu enxergar o mundo, hoje eu sou poeta!”.
Quando morava na região de Nova Granada, João ficou sabendo dos planos de um tio, que residia em Tupã, e que se preparava para vir para São Paulo. Então, dado sua imensa vontade de conhecer a cidade de São Paulo para cantar no Rádio, sentindo-se só, desligado de suas raízes desde a morte de seus pais, João foi à Tupã no trote de seu querido cavalo, chamado “Chumbo”, para combinar sua partida rumo à cidade de São Paulo.
A viagem e o contexto de chegada foram apagados de sua memória, não tendo conseguido narrar nada sobre esse episódio ocorrido em 1954. Com o dinheiro da venda do cavalo, ele viabiliza sua mudança para São Paulo, onde demorou a arrumar o primeiro emprego. Quando suas economias acabaram, iniciou sua primeira atividade na cidade, no ramo da construção civil, como “bate-estaca”. Depois, empregou-se em uma fábrica de zíper, até que ingressou no ramo metalúrgico, primeiro como “prensista” e depois como “soldador”. Em 1958, João tornou-se funcionário da “Mercedes-Benz”, onde ficou por oito anos.
Depois de passar por tantas outras ocupações, ainda na Mercedes-Benz, filiou-se à AP (Ação Popular), desenvolvendo atividade política. Nessa fase, ficou conhecido na indústria como “Gazetinha”, já que era ele quem transmitia os informes sobre os atos políticos. Em 1964 foi preso pela polícia política na fábrica em que trabalhava e sofreu terríveis torturas, no interior do prédio do DOPS. Contando o episódio em que foi preso pela polícia, ainda com o “macacão molhadinho de suor” do trabalho, o entrevistado reviveu seu passado:
(...) quando veio a ditadura feia mesmo (...), eles me chamaram na ‘Bardela’ pela portaria dos fundos. [Disseram]: ‘João estão te chamando na portaria dos fundos...’. Quando falaram isso, eu já me toquei. [Eram] dez horas da noite. Eu cheguei [lá fora e vi que] era o Fleury, a fera de São Paulo, o delegado Fleury, o criminoso de São Paulo. Então, já falou comigo que era para eu ir ao DOPS prestar depoimento, já mandou um tira entrar comigo na fábrica para me trocar, (...) [o policial] não tirava a mão do meu ombro, aí veio o Felício, mestre da obra, mestre da Bardela, ele pôs a mão no outro ombro e falou: ‘João, vai tranqüilo, daqui só vão levar boas notícias de você’. Sabe, aquele apoio maravilhoso! Daí, eu guardei as ferramentas, (...), e quando eu entrei no vestiário, tinha três tiras, tudo com metralhadora na mão (...). No primeiro dia, me bateram muito, me derrubaram no chão, me chutaram (...) Aí no segundo dia me levaram para o pau-de-arara, me fizeram tirar a roupa (...) e muito choque !! Fiquei pendurado [durante] umas três horas e meia (...) Quando eu cheguei na cela eu me emocionei, por ter segurado a barra, e não entregar as pessoas que eles queriam que eu entregasse (João, 2006 apud Godoi, 2007).
O desfecho do relato acima permite perceber a força do código ético que lhe manteve em pé. “Fura-greve”, “pelego” ou “delator” são adjetivos atribuídos àqueles que não partilham deste código. Para João Chile, o cumprimento desse código do protesto operário permitiu, mediante as agressões físicas e psíquicas sofridas nos onze meses de prisão nos porões do DOPS, uma reestruturação interna a partir da atribuição de um sentido coletivo ao seu drama pessoal. João Chile, quando retorna à cela, é recebido por seus companheiros que ficaram contando os minutos pelo relógio da Estação da Luz à sua espera.
No momento da entrevista, em 2006, João Chile era esposo de Alzira, com quem se casou em 1958. Pai de quatro filhos, João guardava um enorme orgulho de sua família e encontrava em seus filhos o reconhecimento e a força para seguir lutando ao lado de outras vítimas da ditadura civil-militar, por reparação histórica e contra os danos morais (irreparáveis, segundo João) causados pela tortura.
Notas:
¹GODOI, S. C. (2007). A roça e o aço: as experiências e as resistências operárias no Brasil Moderno (1954 a 1964). Dissertação de Mestrado. Campinas, Universidade Estadual de Campinas.
*Colaborador externo.