Mito no roçado: o canto recitado de histórias em versos de Dona Militana
Por Márcia Carvalho
Dona Militana é uma reconhecida romanceira brasileira. Nascida no sítio Oiteiros, em São Gonçalo do Amarante, no Rio Grande do Norte, em 1925, falecida em 2010 em condições humildes e duras, indignas de seu talento e importância cultural, como se pode constatar no curta dirigido por Hermes Leal intitulado Dona Militana – A romanceira dos oiteiros (2010).
Dona Militana foi descoberta pelo folclorista Deífilo Gurgel ainda nos anos 1990, quando ele pretendia entrevistar o seu pai, Atanázio, mestre do fandango. Desde menina trabalhava com o pai na roça, e o ouvia cantar histórias e romances, além de entoar aboios e fandangos. Assim, Dona Militana continuou a cantar os romances que aprendeu com o pai, além de inventar mais alguns, num canto criativo aberto a reinvenções.
A força de seu canto, revestido de memória e tradição oral, está registrada no disco triplo Cantares, de 2000, com 54 romances. O disco possui concepção, iconografia, direção artística e de produção de Dácio Galvão. Em suas palavras: “Priorizando o canto tentamos relacioná-los às sonoridades e ecos melódicos, reidentificando-o a possíveis protomatizes: no medievo, renascimento, africanismo, no som mourisco, lusitano e flamenco”.
Para isso, reuniu músicos e instrumentistas diversos, resgatando também a cultura popular brasileira e suas sonoridades, entre eles Antonio Nóbrega (rabeca), Gereba (violão), Euzébio Macaíba (rabeca), Mestre Salustiano (rabeca), Mingo Araújo (tambor falante), Luizinho Calixto (fole de 12 baixos), Waldonys (sanfona), Jubileu Filho (viola de 10 cordas), Estevam Fernandes (banjo, cavaquinho), Roberto Corrêa (viola de cacho), João Omar (violão e cello), Osvaldo D’Amore (violino), Dolores Portela (cravo), Décio Gioielli (kalimba, percussão), Luca Raele (clarinete) e Péricles Johnson (fagote).
Nos seus romances gravados ouvimos o canto em primeiro lugar e a instrumentação respeitando o seu ritmo e as culturas diversas. No seu canto, a história de vinganças e traições, reis e rainhas, matadores, escravizados e cangaceiros. Na sua performance, temos um convite para ouvir histórias além do tempo num processo de mitificação do vivido, quando a voz ultrapassa a palavra.
Como se sabe, o romance surge na França medieval com a influência da canção e da lírica trovadoresca. A sua origem é popular e é marcada pela oralidade. Como gênero literário, o romance nasceu como uma narrativa cantada, declamada em versos. Assim o romanceiro se caracteriza por uma coleção dos romances, poesias e canções populares que constituem a literatura poética de um povo.
No Brasil, o romanceiro é uma herança da cultura europeia, trazido desde a época quando aqui chegaram às embarcações colonizadoras. Marcado pela cultura oral dos portugueses e espanhois, o romanceiro brasileiro se desenvolveu com as narrativas orais populares, caracterizando a literatura popular ao lado do cordel (escrito) e da tradição oral das cantigas. Essa literatura nem sempre possui autoria e se expande pelo tempo pela repetição e reinvenção, num movimento que atravessa diferentes gerações e versões das mesmas histórias.
Segundo José Ramos Tinhorão em seu livro As origens da canção urbana (2011) a prática de se “cantar romances” vem da antiga tradição da monodia dos cantos míticos e épicos do fim da Idade Média, precursora das canções solistas estruturadas que irão desenvolver o que chamamos de música popular. Tinhorão afirma que o canto recitado de histórias em versos foram inicialmente míticos e épicos, depois étnicos e nacionais, para finalmente, tornarem-se líricos e novelescos, semrpe acompanhados de algum instrumento musical.
Essa tradição de “cantares narrativos” revela um fascínio pelo passado e por um tempo mítico. Esses romances, por serem de constituição oral, são múltiplos, contraditórios e ganham novos enlaces narrativos por acumulação. Nessa linha, é interessante lembrar que o medievalista Paul Zumthor já investigou os valores míticos da voz, interessado em desvelar a história da poesia oral no mundo, seu regime arcaico, imaginário coletivo, sua memória entre profecias e poéticas. Os estudos de Zumthor sobre a poesia oral também valem igualmente para a canção e abordam a cultura como memória se ocupando da reconstrução da experiência humana no tempo, o que parece reverberar na voz de Dona Militana.
Também o filósofo Friedrich Nietzsche se interessou pelo impulso dionísiaco da origem da música a partir da canção popular no livro O nascimento da tragédia, analisando a sua capacidade de revigorar os mitos. Para Nietzsche, a canção popular se apresenta como “espelho musical do mundo”, pensando a arte na perspectiva da vida, a canção como reflexo da experiência, de sua memória e história cultural.
Para destacar um exemplo do mito na expressão oral, no terceiro disco, Dona Militana apresenta “Romance de Sirino” com o arranjo e acompanhamento do músico Gereba ao violão e Luca Raele na clarinete. No encarte do disco temos a transcrição do romance, feita por Marília Cabral de Azevêdo. Ouvimos então:
Vô contar uma estora
De uma família inteira
Duma disgraça que houve
Na família dos Texera
Brada fon’ter’ ri’ e mare
Senhor subre delegado
Sinhô subre delegado
Foi prender um guabiraba
Po caso desta prisão
Quaje os Texera se acaba
Brada fon’ter’ ri’ e mare
Quaje os Texera se acaba
Brada fon’ter’ ri’ e mare
Sirino ia passando
Sirino ia passando
Naquela escuridão
Quando sartô-lhe na frente
Manuel Rodrig’ e João
Brada fon’ter’ ri’ e mare
Sirino quando se viu
De curing’ arrudiado
Dizê – Hoje eu mato dez
É pru me ver aperreado
Brada fon’ter’ ri’ e mare
Aí vinha Manel Rudrigue
Encuido que nem bola
Sirino pela cintura
Disparô-lhe uma pistola
Brada fon’ter’ ri’ e mare
Esse tiro qu’ele deu
Esse tiro qu’ele deu
Sirino desaprumou
Enterrô-se de mat’ adent’
E nunca mais ninguém achô
Brada fon’ter’ ri’ e mare
Sirino ia pulano
Naqueles escuridão
O cavalo assustô-se
Botô Sirino no chão
Brada fon’ter’ ri’ e mare
Sirino quando caiu
Sirino quando caiu
Com tamanha roncaria
Se pensava qu’ era o vento
Quando na serra corria
Brada fon’ter’ ri’ e mare
Se pensava qu’ era o vento
Quando na serra corria
Brada fon’ter’ ri’ e mare
Sirino tava no chão
Sirino tava no chão
A luz dos olh’ apagado
A luz dos olh’ apagado
E o beiço por um passô
- Sirino tu non dissesse
Sirino tu non dissesse
Qu’ er’ o colar da rama
Nego tem no coro seco
Cabra cadê tua fama
Brada fon’ter’ ri’ e mare
Alevantô-lhe a cabeça
Alevantou a cabeça
Qu’ ele mais já não pudia
E disparô-lhe o revolvre
Merm’ em cima na viria
Brada fon’ter’ ri’ e mare
- Minha cumade cunhada
Minha cumade cunhada
Cavalo zeloz chegô
Ele vem freiad’ e solto
Essa hora foi Sirino
Qu’ ele vem preso vem morto
Brada fon’ter’ ri’ e mare
Essa hora foi Sirino
Qu’ ele vem preso vem morto
Brada fon’ter’ ri’ e mare
Foi Juvino disse a Paulo
E foi Paulo disse a Juvino
- Nói vamos a Barro Verde
Vingá morte de Sirino
Brada fon’ter’ ri’ e mare
Nói vamos a Barro Verde
Vingá morte de Sirino
Brada fon’ter’ ri’ e mare
No descer de uma ladeira
E no passá duma verten’
Encontrara pade Vicent’
- Meus filho pra onde vão
Meus filho pra onde vão
Com tamanhe maldado destino
- Nói vamos a Barro Verde
Vingá morte de Sirino
Brada fon’ter’ ri’ e mare
- Pela hóst’ e pelo cali
Pela hóst’ e pelo cali
Por tudo quant’ é divino
Que vocês vorte pa trás
E non mate um moço Derfino
Brada fon’ter’ ri’ e mare
E venha meu Deus do céu
E venha meu Deus do céu
Com todo os anjo divino
Ind’ ele pedind’ eu farto
Mair mat’ um moço Derfino
Brada fon’ter’ ri’ e mare
As espada desses home
As espada desses home
Na ponta tinh’ um azogue
Que picaro este pade
Como carne no açogre
Brada fon’ter’ ri’ e mare
Que picaro este pade
Como carne no açogre
Brada fon’ter’ ri’ e mare
Em no aicero do terrero
No acero do terrero
For’ uvind’ aquelas voze
- Nói sendo muler honrada
Adorando dois feroz
Brada fon’ter’ ri’ e mare
Foi Juvino disse a Paulo
E foi Paulo disse a Juvino
- Num acho os home em casa
Mata muler e menino
Brada fon’ter’ ri’ e mare
Foi Juvino disse a Paulo
E foi Paulo disse a Juvino
- Vamos pa detrais da serra
Nóis matasse home só
Nóis matasse home só
Nossas arma se sarvaria
Matemo muler e menino
Estô que ela está perdida
Brada fon’ter’ ri’ e mare
No canto a dissolução do mito com sensibilidade lírica, abandonando os feitos heróicos para entoar uma história de vingança. Na linguagem e na narrativa, pode-se perceber a exploração de uma realidade seca, brasileira na sua simplicidade cortante, universal em sua trajetória de violência, sem brechas para idealismos ou qualquer tipo de redenção. Assim, o canto se torna literatura, a melodia acompanha a narrativa e Dona Militana se torna a maior romanceira brasileira. “Brandam fonte, terra, rio e mar”.
Referências
NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia ou Helenismo e Pessimismo. Tradução, notas e posfácio de J. Guinsburg. 2ª. Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
SANTOS, Alvanita Almeida. O Canto das mulheres - entre bailar e trabalhar: relações de gênero em narrativas orais (romances). Tese de doutorado. Salvador: UFBA, 2006.
TINHORÃO, José Ramos. As origens da canção urbana. São Paulo: Editora 34, 2011.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Tradução de Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochat, Maria Inês de Almeida. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
Links:
Documentário: Dona Militana – A Romanceira dos Oiteiros
Brasil, 19 minutos, 2010 - Roteiro e Direção: Hermes Leal
Produção: HL Filmes
https://www.youtube.com/watch?v=JpPWFPZj9L4
Disco triplo: Cantares (2000)