O nascimento da canção no espírito da palavra-música

Por José Miguel Wisnik*


Prefácio do livro recém-lançado de Henry Burnett: Espelho musical do mundo. São Paulo, Editora Phi, 2021, 256 págs.


Espelho musical do mundo, de Henry Burnett, é guiado por uma hipótese extraída das bordas d’O nascimento da tragédia de Nietzsche, e que pode ser resumida assim: o vínculo arcaico entre palavra e música, remontando a uma canção popular originária que terá contribuído crucialmente, segundo a interpretação nietzscheana, para a origem da tragédia grega, permanece vivo na tradição da canção popular brasileira. A postulação da origem popular e musical da tragédia, pelo jovem Nietzsche, sempre foi sabidamente temerária do ponto de vista filológico, mas esse risco parece inerente àquilo que a faz ao mesmo tempo “desconcertante”, “arrebatadora” e crível. Estendê-la, além disso, para o âmbito da música popular brasileira pode soar francamente descabido se a ideia não for bem calibrada. Henry Burnett sabe o quanto é problemática a sua aposta e busca, durante todo o livro, qualificar o que ela tem de procedente em sua extemporaneidade, resguardando-a ao mesmo tempo do tom apologético e cercando-a de considerações críticas incansáveis sobre o seu estatuto contraditório de canção de mercado.

Isolemos, antes de mais nada, o mote inspirador do livro, para tentar esclarecer o seu impulso primeiro. Remontar a origem da canção brasileira a um substrato cultural antiquíssimo não significa, obviamente, ver entre Brasil e Grécia alguma relação de causa e efeito. Origem aqui não é uma questão de causa nem de forma, mas sim de um princípio originário imemorial – arkhé, algo que sempre volta – que reside nesse híbrido falante/cantante/dançante que é a canção. Princípio que se repõe em ondas históricas e que se manifesta com força em alguns momentos e culturas. Trata-se da aliança da poesia oral com a música, não quando uma ilustra a outra, simplesmente, mas quando elas atingem um elevado grau de irradiação sobre as esferas da vida prática e da vida espiritual, empolgando o corpo e o não-corpo, a individuação e sua perda no coletivo, levando ao transe ou ao encantamento. Em outras palavras, e para retomar os termos consagrados por Nietzsche, quando o apolíneo e o dionisíaco revertem um no outro, despertando o entusiasmo da possessão por um deus (ou, no caso, por dois). Não se trata simplesmente, pois, da musicalização da palavra, mas da instauração de estados e efeitos que envolvem eficácia e poder, quando palavra e música confundem suas propriedades a ponto de se tornarem quase indistintas. Aquilo mesmo que faz Nietzsche dizer, conforme Burnett, que a união natural do poeta com o músico constituía-se “no mais importante fenômeno de toda a poesia lírica da antiguidade” e fazia a poesia mais recente, destituída de música, parecer “a estátua sem cabeça de um deus”.

Na formulação contida n’O nascimento da tragédia, a base dessa poesia dotada de corpo e voz é eminentemente popular – expressão da massa anônima, mesmo que modulada pela subjetividade de seus poetas líricos, seus Arquílocos. O poeta-músico e cantor está conectado a uma corrente coletiva subterrânea que deita raízes na “profunda e inconsciente ligação rítmica e melódica com o subsolo sonoro (Tonuntergrund) que define, segundo Nietzsche, o humano mais essencial”. Sob esse aspecto, a própria ideia adorniana de “corrente subterrânea coletiva”, que o filósofo invoca na “Conferência sobre lírica e sociedade” como sendo uma força sustentadora do caráter social da lírica individual,[1] ganharia uma pertinência à parte, pode-se dizer, no caso de García Lorca, poeta-músico intensamente ligado à música popular andaluza e autor da “Teoria e jogo do duende”, ensaio que não deixa de ser uma percepção originalíssima, fulgurante e moderna do dionisíaco.[2]

Podemos dizer que palavra e música, atingindo às vezes as raias do dionisíaco e da possessão, vivem alguns momentos privilegiados de coalizão e de coalescência ao longo da história cultural dos séculos, quando sua junção se torna dominante em certos contextos, recaindo depois em estados recessivos, condenados à margem, em que morrem e se separam, sem deixar de reaparecer vivas e juntas, depois, em outro lugar. Por isso mesmo, essa canção originária postulada por Nietzsche é, como diz bem Henry Burnett, uma entidade que fica em algum lugar entre o metafísico e o sociológico, reaparecendo espasmodicamente e se entranhando em diferentes condições históricas.

Se as canções líricas e báquicas de Arquíloco datam do século VII a.C., e o fastígio da música na tragédia data especialmente do século VI, o século V a.C. assiste à sua mitigação e à perda da força da música na encenação teatral. A seu modo, a Grécia viveu também um fim da canção, à medida em que a influência do dionisismo – manifestação, segundo Vernant, de mulheres, escravos e camponeses alijados da Pólis,[3] que teria infundido seu bafo poderoso na tragédia grega, na hipótese do jovem Nietzsche – declina junto com a passagem do mito à razão filosófica. Segundo um fragmento mítico citado por Aristóteles na Política, Palas Atena, a deusa virgem saída diretamente do crânio de Zeus, persona da sabedoria, da razão e da castidade, defensora do Estado e do lar contra seus inimigos externos, protetora da vida civilizada e inventora das rédeas que controlam os cavalos, ao ver sua face refletida num lago, quando tocava o aulos – a flauta dionisíaca – , se desconhece e se horroriza diante de seu próprio rosto (inflado pelo sopro) e atira o instrumento às águas. Esse mito anti-dionisíaco, em que a face estranha desse outro, o orgiástico, é afastada com horror, sela a negação das músicas populares de possessão pela filosofia aristotélica, como já acontecia com a platônica, indo morar no esquecimento da evolução musical do ocidente.[4]

A poesia-música provençal do século XII, por sua vez, – caldo de cultura na qual poesia sem música era o mesmo que moinho sem água, e onde palavras e sons se entrebuscavam na canção como as línguas no beijo – ,[5] sofre nos séculos seguintes uma cisão provocada pela invenção da escrita musical, por um lado, e pela invenção da imprensa, por outro. A escrita musical incrementa a linguagem polifônica e afasta a música da expressão direta da linha poética, ao multiplicar as vozes; a imprensa acaba por guardar a palavra no silêncio do livro.[6] Poeta e músico passam a ser então, no Ocidente, funções especializadas que não se conjugam mais na mesma pessoa, ao contrário daquilo que acontecia nos tempos da gaia ciência (expressão aliás tardia, do século XIV na Catalunha, designando o “saber alegre” da poesia-música justamente quando essa prática deixava de vigorar como o fizera no século XII provençal).

Apoiado em Peter Burke, Henry Burnett nos indica que a hipótese da origem popular e musical da tragédia grega não terá caído do céu, em Nietzsche, mas terá advindo em alguma medida da “descoberta do povo” no pré-romantismo alemão, voltado, com Herder, para a pesquisa dos Volkslieder – compêndio de canções populares nas quais Herder reconhecia a “eficácia moral da antiga poesia”, com sua circulação oral e musical atada às funções necessárias da vida. Em O nascimento da tragédia, Nietzsche teria procedido, segundo Burnett, a uma espécie de extensão retroativa dessa valorização da poesia-música popular, aplicando à Grécia antiga algo daquela onda espiritual que empolgara a cultura alemã entre o fim do século XVIII e o início do XIX. O assunto acaba passando, pois, quase que necessariamente, por um processo de transposição temporal entre esses diferentes lugares, como se eles só pudessem se fazer reconhecer através de suas reverberações: a remota poesia-música grega reverbera na gaia ciência medieval, que reverbera no cancioneiro popular europeu do início da idade moderna em vias de desaparição, que Nietzsche prospecta no melodrama wagneriano e depois se arrepende, reconhecendo mais tarde na ópera Carmen de Bizet (meridional, ibérica, limpidamente sensual, dotada de uma “alegria africana”, segundo ele)[7] a força que pensou encontrar em Wagner. Se é assim, podemos perguntar: por que não considerar o fenômeno da canção brasileira como parte potente dessa mesma história, dessa cadeia de aparições e desaparições, de lampejos da poesia-música apolíneo-dionisíaca na história dos séculos? É o que faz Henry Burnett, no fundo, sabendo que essa evidência é tão “difícil de negar” quanto “difícil de provar”.

Mas o mesmo livro de Peter Burke, Cultura popular na idade moderna, trabalhado por Burnett, junto com o de Mikhail Bakhtin sobre Rabelais e a cultura popular da Idade Média e da Renascença,[8] ajudariam a contextualizar, por contraste, essa reivindicação. Se Bakhtin e Burke mostram, ambos, o modo como, no século XVII, as festas populares de espírito carnavalesco foram desativadas na Europa, tanto em países da Reforma como da Contrarreforma, no Brasil colonial não houve interrupção dessas tradições populares – ao contrário, manteve-se certa continuidade daquela tradição medieval desativada nos prenúncios da Europa moderna. O cancelamento forçado ou induzido das festas de rua de espírito carnavalesco, na Europa, não alcançou propriamente a colônia portuguesa. No calendário das festas de largo na Bahia, por exemplo, só muito recentemente desfigurado pela agenda mercadológica, continuou viva ainda lá a marca da “primavera dos povos” medieval, feita de festas populares que se realizavam nos meses de dezembro, janeiro e fevereiro, desembocando no carnaval, retomado no São João e tendo no meio da quaresma a mi-carême (meia-quaresma), que na Bahia virou micareta. Burnett refere-se, bem a propósito, ao interesse de Nietzsche, desde as suas primeiras aulas de filologia, pelas festas de são João e são Guido, além da Fastnachtspiel, “festa de rua europeia cujo único paralelo possível que nos resta são os entrudos, há muito perdidos na história do nosso carnaval”.

Esse influxo festivo e religioso é densamente intensificado, incorporado, encorpado e quintessenciado, no Brasil, pela presença africana. Aliás, parte significativa dos gêneros da música popular brasileira são estruturados sobre o repertório das claves rítmicas do candomblé, tocadas em contexto ritual pelo gam (instrumento metálico, espécie de grande agogô) e pelos três atabaques rum, pi e . Entre esse complexo código rítmico constituído pelas claves, também chamadas de toques, o cabila é a mais notável pela sua relação com o padrão dominante do samba. Que tem, assim, uma afinidade de fundo, secreta e originária, com a música de transe.

Estão dados aí, portanto, a corrente subterrânea coletiva, musical, oral, dançante, mais o substrato religioso, o dionisismo carnavalesco, com suas poderosas baterias percussivas, seja cariocas, baianas, pernambucanas ou paraenses, e as manifestações da subjetividade lírica que se destacam dessa corrente coletiva sem se desligarem dela, indo em zigue-zague do elementar ao complexo, do erudito ao popular, do musical ao literário, e cujo expoente qualitativo sobe ao infinito.

Em Espelho musical do mundo, Henry Burnett poderia facilitar a própria vida se marcasse mais diretamente esses pontos do território em que a relação de base que ele propõe parece flagrante. Poderia ter destacado e desenvolvido o dionisismo militante da tragycomediaorgia no teatro Oficina Uzina Uzona com Zé Celso Martinez Correia (a quem ele dedica, aliás, o seu excelente Para ler O nascimento da tragédia de Nietzsche).[9] Bem sintomaticamente, a esse propósito, vale lembrar a afirmação de Zé Celso de que o prêmio Nobel de literatura deveria ser atribuído a Mick Jaegger e não a Bob Dylan, pois ele – Zé Celso – só acredita num poeta da canção que faça dançar (!). Henry poderia reconhecer a combinação de tragédia e carnaval em Elza Soares. Poderia pensar na já referida africanidade da Carmen, sugerida de passagem por Nietzsche e registrada no excelente Para ler O caso Wagner de Nietzsche, escrito também por Burnett,[10] como uma indicação de destino do dionisismo nas Américas.

Sua honestidade intelectual o faz, no entanto, saber que essa passagem não poderia ser levada em linha reta sem camuflar os enormes problemas que se apresentam para o exame de uma música que opera no mercado de massas e que têm relação com a tumultuada história da música moderna no ocidente. Traz à cena, assim, uma grande quantidade de questões que envolvem a canção, seus luminares e seus descontentes, a música popular e a de concerto, num texto em que se cruzam Nietzsche e Adorno, Caetano Veloso e Roberto Schwarz, Mário de Andrade e Gilberto Mendes, sem que se definam claramente os pressupostos, às vezes antagônicos, que movem uns e outros. É essa falta de especificação esclarecedora que provoca ao longo do livro, a meu sentir, uma espécie de congestionamento crítico-teórico atrapalhando o trânsito, aliás acirrado, das informações associativas.

Entre todos os problemas que o livro levanta, me parece que o nó crucial está no entendimento de Mário de Andrade. Trata-se de um artista-pensador tão decisivo para o tema aqui abraçado, que sinto que não devo terminar essa conversa sem destravar um ponto que viria enormemente a favor, a meu ver, do fluxo central do livro. Henry observa corretamente que o programa de Mário para a música erudita brasileira consiste em pesquisar a música popular rural, anônima e coletiva, de modo a incorporá-la à arte letrada e dar a esta uma feição nacional. A música popular a que Mário se apega em seu projeto não é a comercial de massa, descaracterizada segundo ele pela pressão danosa do urbanismo, do mercado e da influência estrangeira, mas a música folclórica – a dos sambas rurais, dos bumba-meu-bois, reisados, pastoris e congadas, catimbós, cocos, cururus, modas-de-viola e cateretês. É essa que deveria ser transfundida em música de concerto pelos compositores nacionais, ressaltando-se enfaticamente, no Ensaio sobre a música brasileira, que quem não entrasse nessa linha de conduta artística seria “pedregulho na botina” a ser devidamente descartado.[11]

É por isso mesmo que Mário de Andrade, que falou sobre quase tudo, em se tratando de música brasileira, não escreveu um único estudo sobre o samba urbano, de cuja importância estamos mais do que conscientes hoje, nem fez menção relevante, quanto mais um ensaio à altura, a Noel Rosa ou Dorival Caymmi, gênios da canção seus contemporâneos, que faziam parte de um sistema cancional já formado, no final dos anos 1930. Henry Burnett observa corretamente que Mário não percebeu que seria sobretudo na canção urbana, e não na aliança do compositor erudito com o folclore, que o desígnio de uma música brasileira capaz de reconhecer-se em alto nível estético aos nossos olhos e aos do mundo, viria a realizar-se. Seria ali também que os avatares da canção originária, apolíneo-dionisíaca, encontrariam o seu desaguadouro ao mesmo tempo superficial e profundo, como queria o Nietzsche da gaia ciência.[12] Mas essa consciência só ganharia clareza depois da bossa nova.

Não se trata, pois, de acusar anacronicamente Mário de Andrade por essa omissão, mas de reconhecer que operava ali uma forma mental dominante no modernismo musical brasileiro, que buscava nas formas mais puras e intocadas da música rural, à maneira de Herder, o substrato para uma composição erudita comprometida com o achado da essência nacional. Gilberto Mendes observa que, se a música folclórica se oferecia ao músico erudito nacionalista como repertório passivo, mais afeita por isso mesmo a ser tomada como objeto de manipulação compositiva, o jazz e as demais músicas urbanas atuavam de forma insubordinada sobre a linguagem musical moderna, sem se restringirem ao papel de fornecedoras de temas e motivações. É assim que o tango, a rumba, o samba, além do jazz e sem falar no acontecimento altamente criador da bossa nova, eram reconhecidos por Mendes, escrevendo em 1975, como participantes ativos no processo instaurador da música do século XX, em contraponto com a música erudita, mesmo a de vanguarda.[13] Esse paradigma crítico havia sido instaurado, alguns anos antes, pelo Balanço da bossa, de Augusto de Campos, cuja primeira edição data de 1968.[14]

Mário de Andrade postulava, pois, uma aliança específica entre a música rural, anônima e coletiva (música interessada, segundo ele, porque ligada às necessidades práticas da vida comunitária, à colheita, às festas, aos ritos) e a música erudita (destinada à fruição e à contemplação estética desinteressada, num sentido kantiano, embora Mário não cite o filósofo). Aliança a ser efetivada pela ação de mediadores culturais – pesquisadores e compositores comprometidos em transformar juntos as matrizes temáticas e técnicas das músicas folclóricas em arte erudita.

Não vamos nos alongar sobre o fato de que se tratava de um programa que elegia a cultura pré-industrial como a base primordial de um projeto moderno, num país em franco processo de industrialização, com todos os impasses e decorrentes fracassos práticos envolvidos nisso. O ponto que importa destacar, para o argumento deste livro, é que Henry Burnett, ao assinalar essa passagem do folclore ao concerto, do comunitário ao estético, da vida à arte, do valor interessado ao desinteressado, no programa de Mário de Andrade para a nacionalização integral da cultura brasileira, acredita muito literalmente na unidirecionalidade desse processo, como se ele não tivesse a suas contradições, suas guinadas e sua contrapartida fortemente dionisíaca no autor de Macunaíma.

Me explico. É que Mário de Andrade precisa ser entendido como uma personalidade intelectual e artística intrinsecamente dramática, agônica, no sentido próprio de conflituada, ambivalente, oscilante entre contrários não excludentes. Uma de suas personae é de fato a de uma espécie de Herder, o pesquisador dos Volkslieder, que se auto-erigisse num Platão da República musical brasileira, buscando organizar a cultura no sentido de uma ampla conciliação entre os estratos orais da cultura popular e os níveis letrados da cultura erudita, no afã, ou na missão auto-imposta, de superar o abismo entre classes, repertórios e linguagens, a partir do alto. Note-se que, ao fazer isso, ele já estaria convertendo a seu modo a estética desinteressada da arte de concerto em música interessada no projeto nacional, como deixa claro no Ensaio.[15]

Mas acontece além disso, e principalmente, que esse Platão contém em si um Nietzsche d’O nascimento da tragédia: o poeta-músico das “Dinamogenias políticas” (em Música, doce música), da “Terapêutica musical” (em Namoros com a medicina), dos mantras indígenas de Macunaíma voltando para a querência, do torpor amazônico no “Rito do irmão pequeno”, das glossolalias, da palavras sonoristas e sem significado, da melopéia hipnótica do catimbozeiro e do canto dançando na boca do Inca como a folha de coca (em Música de feitiçaria no Brasil), tudo enfim que devolve a arte à vida pela via da palavra-música. Sobre o bumba-meu-boi, afirmou em Danças dramáticas brasileiras tratar-se de uma tradição de origem dionisíaca, baseada num culto vegetal em que o deus morre junto com a natureza no inverno e renasce junto com ela na primavera, culto este que se teria convertido, no Brasil, num culto animal ligado à pecuária. Assim, sem que se acuse a leitura de Nietzsche em sua biblioteca nem em seus fichamentos, pode-se dizer que Mário identificou no contexto dessas práticas festivas brasileiras um princípio que podemos reconhecer como afinado com ressonâncias nietzscheanas indiretas e com o nascimento da tragédia no espírito da música.

Como Mário de Andrade é uma figura de passagem obrigatória, incontornável, na discussão dos destinos da música brasileira em sentido amplo – como a rotatória de todas as encruzilhadas, que ele é – me parece que lembrar, aqui, da sua dimensão apolíneo-dionisíaca, da sua conexão entre arte e vida, faria com que vislumbrássemos para o roteiro desse livro uma saída, ali mesmo onde parece haver um entrave.

Agradeço ao autor o generoso convite para dialogar abertamente, nesse texto à guisa de prefácio, com as grandes e estimulantes questões trazidas pelo seu livro, que são essas e muitas outras que não cabem aqui. Conversa que já vem de antes, por vários meios e veios, e que esperamos possa continuar, atravessando o transe angustiante e bem pouco dionisíaco que vivemos.


São Paulo, junho de 2021


Notas:

[1] Theodor W. Adorno, “Conferência sobre lírica e sociedade”, em Walter Benjamin, Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Jürgen Habermas, Textos escolhidos, Os Pensadores, volume XLVIII, São Paulo, Abril Cultural, 1975, p. 201-214. Ver, em especial, p. 207-208.

[2] Federico Garcia Lorca, “Teoria y juego del duende”, em Obras completas, Tomo I, Madrid, Aguilar, 1954, p. 1067-1079.

[3] Cf. Jean-Pierre Vernant, “A pessoa na religião”, em Mito e pensamento entre os gregos, tradução de Haiganuch Sarian, São Paulo, Difusão Européia do Livro / USP, 1973, p. 278-279. Ao aspecto fortemente marcado (na religião da Polis), “de integração social de um culto cívico, cuja função é sacralizar a ordem, tanto humana quanto natural, e permitir aos indivíduos se ajustarem, opõe-se um aspecto inverso, complementar ao primeiro, e do qual se pode dizer em linhas gerais que ele se exprime no dionisismo”, voz daqueles “que não podem enquadrar-se inteiramente na organização institucional da Polis” por estarem excluídos da vida política: as mulheres, os escravos, os grupos campesinos alijados do controle do Estado”.

[4] Aristóteles, A política, 1341. Ver Gilbert Rouget, La musique et la transe, Paris, Gallimard, 1980, p. 304. Tratei do assunto em José Miguel Wisnik, O som e o sentido – Uma outra história das músicas, 3ª. Edição, São Paulo, Companhia das Letras, 2017, p. 106.

[5] “Que assim vou entrelaçando / as palavras e compondo o som: língua entrelaçada no beijo”. Versos do poeta provençal Bernart Marti, citados por Giogio Agamben em Estâncias – A palavra e o fantasma na cultura ocidental, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007, p. 212.

[6] Baseio-me em Marie Naudin, Evolution paralléle de la poésie et de la musique en France: Rôle unificateur de la chanson, Paris, A.G. Nizet, 1968.

[7] Ver Friedrich Nietzsche, O caso Wagner: um problema para músicos / Nietzsche contra Wagner: dossiê de um psicólogo, tradução notas e posfácio de Paulo César de Souza, São paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 13.

[8] Mikhaïl Bakhtine, L’oeuvre de François Rabelais et la cultura populaire au Moyen Age et sous la Renaissance, Paris, Gallimard, 1970.

[9] Henry Burnett, Para ler O nascimento da tragédia de Nietzsche, São Paulo, Edições Loyola, 2012 (Coleção leituras filosóficas).

[10] Henry Burnett, Para ler O caso Wagner de Nietzsche, São Paulo, Edições Loyola, 2018 (Coleção leituras filosóficas).

[11] Mário de Andrade, Ensaio sobre a música brasileira, São Paulo, Martins, [1968], p. 18.

[12] Ver José Miguel Wisnik, “A gaia ciência – Literatura e música popular no Brasil”, em Sem receita – Ensaios e canções, São Paulo, Publifolha, 2004, p. 213-239.

[13] Gilberto Mendes, “A música”, em Affonso Ávila (org.), O modernismo, São Paulo, Perspectiva, 1975, p. 129-130.

[14] Augusto de Campos, Balanço da bossa, São Paulo, Perspectiva, 1968.

[15] “Pois toda arte socialmente primitiva, que nem a nossa, é arte social, tribal, religiosa, comemorativa. É arte de circunstância. É interessada. Toda arte exclusivamente artística e desinteressada não tem cabimento numa fase primitiva, fase de construção. É intrinsecamente individualista. Ora numa fase primitivística, o indivíduo que não siga o ritmo dela é pedregulho na botina. (...) O critério atual de Música Brasileira deve ser não filosófico mas social. Deve ser um critério de combate”. Mário de Andrade, op. cit..

*Colaborador externo.

Publicado originalmente no site A terra é redonda [disponível em : https://aterraeredonda.com.br/o-nascimento-da-cancao-no-espirito-da-palavra-musica]

Link da editora: https://www.editoraphi.com.br/pagina-de-produto/espelho-musical-do-mundo