Os "Samplers" e a arte

Por Sérgio Carvalho da Fonseca

Uma notícia da Folha de São Paulo, de julho de 2019¹, gerou uma grande preocupação numa certa parte da indústria fonográfica, principalmente da música negra, e que possivelmente atingirá fortemente os estúdios independentes. O mais alto tribunal da União Europeia proibiu o uso de “samples” (trechos de música dos trabalhos dos outros artistas) sem permissão. Dada a importância desse tribunal, sua decisão abre precedentes para que esse parecer seja replicado e aplicado por diversas esferas jurídicas em diversos países. Na prática, essa decisão exige que os compositores de uma música sejam consultados e possam pedir uma porcentagem dos ganhos advindos de uma música “sampleada”. Num outro sentido, se uma artista elabora uma canção sobre um trecho de um arranjo musical já existente, sua criação ficará num impasse entre a aprovação de um outro artista, a alíquota pedida para a liberação, os modos e limites de uso, ou seja, parece que se tornará um refém de sua criação e não mais um artista autônomo e livre para criar. Hipoteticamente, para se ter uma noção desse imbróglio, toda a obra dos Racionais MC’s: poderia não ter acontecido; teria, talvez, somente algumas músicas liberadas; ou ainda, o ganho financeiro com algumas músicas, devido ao dinheiro desembolsado para pagar os “samples”, seria tão baixo que inviabilizaria a produção de outros álbuns. Ao que parece, todo o processo artístico estaria afundado numa confusão interminável que, se não inviabilizasse, dificultaria o resultado artístico.

A tese contrária estaria no fato da proteção daquele que, originalmente, foi o compositor e seu devido reconhecimento como tal. Então, caso alguém deseje criar uma música, que tenha conhecimento dessa questão envolvendo os “samples” e saiba aquilo que enfrentará pela frente.

De imediato, este último argumento parece inquestionável e certeiro. Será?

Por vezes não conseguimos resolver as questões dentro do próprio problema e devemos buscar referências em outros modelos. Desse modo, vamos nos utilizar da sétima arte.

Um dos maiores sucessos cinematográficos hollywoodianos da década de oitenta, do século passado, foi Back to the future, do excelente diretor Robert Zemeckis. Em linhas gerais, o protagonista é um jovem guitarrista amigo de um cientista que compra plutônio de terroristas para usar como combustível à sua máquina do tempo. No dia do teste seus fornecedores vêm cobrar a dívida e seu jovem amigo adentra o DeLorean com a câmera de vídeo usada para fazer o registro do teste e viaja para os anos 50 de Chuck Berry, inclusive tocando Johnny B. Goode no dia do baile de formatura de seus pais. Seu retorno só foi possível graças ao encontro com o cientista ainda jovem, convencido pela gravação contida na câmera VHS, e o uso de um sistema de para-raios para substituir o plutônio como combustível.

Ao final de 2018 foi lançado um filme espanhol chamado Durante la tormenta. Numa noite de uma tempestade de raios, um menino se gravava numa câmera de vídeo tocando sua guitarra. Sua concentração é perturbada por sons na casa vizinha que o fazem sair de sua casa, ser atropelado e morto. Vinte e cinco anos depois a casa desse menino é ocupada por uma moradora que, num dia de uma tempestade de raios, encontra a câmera e vê o menino tocando guitarra, porém algo acontece e ocorre sua viagem ao passado que vai se confundir com o seu presente, tal qual o filme de Zemeckis – e a partir daqui se salvaguarda o leitor de spoiler.

Para os fãs do filme De volta para o futuro é impossível não reconhecer os elementos usados pela produção espanhola ligados propositadamente ao tema da viagem no tempo. A guitarra, televisão, câmera e tempestade inseridos num drama, ao invés de comédia, e redefinidos dentro de um outro roteiro.

Retornando ao problema do “sample”, e aplicando aquilo que o tribunal decidiu de modo análogo ao cinema, os produtores do filme americano poderiam exigir que os espanhóis os ressarcissem pelo uso da guitarra, televisão, câmera de VHS e tempestade, já que foram elementos utilizados por eles, primeiramente, em seu filme. Ora, é como se o uso desses quatro elementos, conjugados no enredo anterior, se tornassem uma propriedade exclusiva.

Na música, a combinação entre as doze notas musicais, responsáveis pela melodia e harmonia, para agradar o grande público ficam restritas às notas naturais, compassos simples, acordes primários e consonâncias. Adotando esse modelo, há estruturas que se tornaram sucesso, como afirmou Sting comparando seu sucesso Every Breath You Take a Stand by Me. Nessa mesma estrutura há muitas outras canções que se tornaram sucesso na progressão conhecida como teoria dos três acordes, com um de sétima. Além disso, há milhares de coincidências em trechos de melodias com suas harmonias, como demonstrou o longo julgamento de Stairway to Heaven, favorável à banda britânica Led Zeppelin². Apesar dessa limitação dada pelas notas musicais e suas consonâncias, e um campo restrito dos recursos musicais utilizados às músicas pop, processos de plágio aparecem a todo momento e, com a decisão do tribunal da União Europeia, talvez os “samples” aumentarão o número desses processos que tramitarão nos tribunais de todo o mundo. Mas a vigilância e a reclamação parecem geneticamente engendrados no âmbito da indústria fonográfica.

Enquanto isso a outra indústria, a do cinema, passa muito bem com elementos que estimulam seu público. Afinal, é difícil não sentir vontade, assistindo ao filme Durante la tormenta, de rever Back to the future. Do mesmo modo como é incrível descobrir Issac Hayes sampleado por meio da versão de Jorge da Capadócia e Salve dos Racionais MC’s.

Um artista levando a outro, uma arte levando a outra, num elo que pode ser quebrado por um interesse financeiro imediato e interpretações jurídicas tacanhas, assentadas na vitória das melhores hipóteses de advogados. Com o fim dos “samples” parece que são os amantes da música, por fim, que sairão perdendo.


Notas:

  1. Grupo alemão de música eletrônica vence batalha judicial de 20 anos contra uso de sample - 29/07/2019 - Mercado - Folha (uol.com.br)

  2. Led Zeppelin vence processo de plágio por "Stairway to Heaven" - 09/03/2020 - UOL Entretenimento