Uma travessia de Dorival Caymmi

Por Márcia Carvalho

Todo dia dois de fevereiro, logo pela manhã, ouço a canção dedicada ao dia de Dorival Caymmi. Assim, de maneira cíclica, Dorival atravessa minha vida com essa canção. Por muitos anos, ouvi Dois de fevereiro entoada de forma festiva por Nana Caymmi e depois troquei pela voz doce de Mateus Sartori. A primeira versão consagrada pela família Caymmi, no álbum Família Caymmi em Montreaux – Dorival, Nana e Danilo Caymmi, da gravadora Polygram/ Philips (1991) e a segunda numa versão mais discreta do disco Dois de fevereiro – Mateus Sartori interpreta Dorival Caymmi (2007).

Na discografia de Caymmi, depois de Canções praieiras (1954), centrado na voz grave e no violão, e Sambas de Caymmi (1955) que mistura de maneira singular ritmo e religiosidade, discos lançados pela Odeon, o compositor e intérprete lançou o seu terceiro álbum intitulado Caymmi e o mar (1957), para falar de pescadores, praias e Iemanjá. Entre as canções, claro, Dois de fevereiro e a marcante Noite de temporal.

Segundo Jairo Severiano (2008), Dorival Caymmi cantou Noite de temporal pela primeira vez num programa da rádio Tupi em 1938. Logo em seguida, Ary Barroso e o produtor Wallace Downey incluiram o seu samba O que é que a baiana tem, no filme Banana da terra (1939), cantado por Carmen Miranda. A partir daí, vários de seus sucessos foram cantados em filmes brasileiros, como podemos ver e ouvir no documentário Um certo Dorival Caymmi (2000), de Aluísio Didier.

Como já escreveu Lorenzo Mammì (2002), as músicas de Dorival Caymmi inventam o folclore, mas não lhe pertencem, devido a sua liberdade de ir e vir, se aproveitando do arcaico e do moderno sem qualquer compromisso. Talvez, por isso, as suas canções tão curtas e densas parecem não ter dono. No entanto, Caymmi foi inventor das canções praieiras e dos sambas sacudidos, tornando-se precursor da Bossa Nova e referência que não se contesta para a canção popular brasileira.

Para Luiz Tatit (2002, p. 106), Dorival Caymmi retrata ciclos e fenômenos da natureza respeitando os seus movimentos sem intervenção, desvios ou expectativas em busca das emoções humanas essenciais. Nesse sentido, a canção Noite de temporal pode ser eleita como um exemplo bastante significativo dessa definição de Tatit, pois amplia a sensação de temporal na força ritmica do violão. Força que não se enfrenta sem coragem. Transformando a canção num poema em fúria entre o céu e o mar, entre o canto narrativo que segue os impulsos do violão.

Em sua obra, Caymmi empresta dos mitos seus elementos para entrelaçar melodia e letra. Em seu canto falado retrata o imaginário popular nas fronteiras do sagrado e do profano, resgatando a tradição oral de contar histórias do cotidiano e do culto à religiosidade, reverberando uma mistura entre mitos e realidade. Não à toa, Iemanjá aparece em diversas canções. Iemanjá é uma divindade vinda da África, mas se tornou a orixá mais brasileira em seu sincretismo e miscigenação.

Gilberto Gil, na canção Buda nagô, afirmou que Dorival Caymmi é, entre muitas outras coisas, índio que bebe garapa. Será, então, que Iemanjá, com ou sem y, também não seria Iara? Será que dia dois de fevereiro também pode ser festejado no canavial do interior do estado de São Paulo?

Diante dessas e outras questões, a canção Dois de fevereiro se torna, para mim, uma ode à passagem do tempo, ao ciclo da vida. Uma cantiga feita para a rainha das águas que protege os pescadores e outros navegantes por diferentes mares, rios e correntezas. Um canto que reforça a necessidade de se ter paciência com os pedidos e oferendas a essa divindade, saudando um dia de festa.

Por isso, todo dia dois de fevereiro é dia de colocar sua canção na vitrola e enfeitar a casa com rosas brancas, sem esquecer as caipirinhas e o camarão com leite de coco. E, com respeito, entoar um saravá: Odoyá, Yemanjá! Odoiá, Iemanjá! Afinal, esse texto também é uma oferenda para a rainha que anda de mãos dadas comigo, e sabe que Dorival Caymmi também fez essa canção pra mim.


Referências

CAYMMI, Stela. Dorival Caymmi: o mar e o tempo. São Paulo: 34, 2001.

MAMMÌ, Lorenzo. Dorival Caymmi. In: NESTROVSKI, A. (org.). Música popular brasileira hoje. São Paulo: Publifolha, 2002, p. 73-74.

SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira. Das origens à modernidade. São Paulo: 34, 2008.

TATIT, Luiz. O cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: EDUSP, 2002.


P.S.: A autora nasceu em Ribeirão Preto, interior do estado de São Paulo, no dia dois de fevereiro de 1977.