As histórias de barata e a vida barata: Vida à venda, de Yukio Mishima

Por Leonardo Silva

“Hanio abriu os olhos. Pensou estar no paraíso, pois a luminosidade ali era intensa. Mas a forte dor na nuca persistia. Dor, no paraíso, não podia ser.” (MISHIMA, Yukio. Vida à venda. Trad. Shintaro Hayashi. São Paulo: Estação Liberdade, 2020, p. 9). Dessa maneira Yukio Mishima começa a história de Hanio Yamada, um jovem, de 27 anos, promissor copywriter de uma agência de publicidade, em Tóquio, que, após uma tentativa de suicídio, oferece a própria vida num anúncio de jornal. Abrir os olhos é algo tão trivial quanto abrir o jornal e lê-lo, no entanto, quantas decisões estão supostas na trivialidade desse gesto, quantas atividades e obrigações recrutam as energias e as atenções de todos nós ao longo de um dia, ainda que um dia completamente rotineiro e comum? Hanio abre os olhos e supõe, na claridade ofuscante, o paraíso silente e indolor do sono que desejara horas antes, quando decidiu fechar seus olhos definitivamente. A enfermeira a seu lado diz: “Parece que voltou a si” (p. 9), como se tivesse desatinado. O salvador do jovem, um socorrista musculoso, exclama: “Ótimo, consegui ajudá-lo. Vou me sentir bem o resto do dia.” (p. 9), para a infelicidade do malogrado suicida que não pedira ajuda alguma.

O suicídio de Hanio não fora premeditado, fruto de longa maquinação e negociação consigo mesmo, pois “a vontade de morrer lhe viera de súbito naquela tarde, enquanto lia o vespertino do dia na lanchonete onde costumava jantar” (p. 9), diz o narrador. O personagem não havia tido um dia atípico no trabalho, nem sofria de uma decepção amorosa, ou passava por dificuldades financeiras - muito ao contrário -, mas fora assaltado pela banalidade da vida. Num episódio digno da náusea que toma Roquentin no romance de Jean-Paul Sartre, ao ler o jornal, Hanio vê as letras transformarem-se em baratas e fugirem em debandada, quando abre os olhos para essa percepção que, vez ou outra, atravessa a qualquer um: tal como as notícias do jornal, a vida segue rotineira, desinteressante, página a página virada pelo tempo; e as notícias de hoje, tão iguais às de ontem, parecem ter sido carimbadas sobre o papel. Notícias baratas, história de baratas, vidas-baratas.

O personagem toma a vida como sem propósito, compra sedativos - o que indica o desejo de passar incólume pela dor -, assiste a três filmes no cinema e vai a um bar de paquera. A ida ao bar não deixa de despertar o interesse do leitor, uma vez que o rapaz, como seria de esperar, não chafurda pouco a pouco na melancolia até seu ocaso. No bar, Hanio comunica a uma moça - que, tal como a vida e as baratas no jornal, não lhe desperta interesse algum -, a notícia mais fresca do dia: “Adivinhe o que vou lhe dizer agora. [...] Aposto que não sabe. [...] Pois esta noite, daqui a pouco, eu vou me matar.” (p. 12). O leitor poderia imaginar que a resposta seria de susto, apreensão, até reprimenda, mas “a menina abriu uma bocarra e se pôs a rir” (p. 12). O programa da noite acabara, Hanio sai do bar, dirige-se à estação, toma os sedativos no bebedouro como quem toma uma aspirina, e embarca no trem. Uma vida sem dor, anestesiada por uma aspirina ou por um sedativo qualquer, à bordo da locomotiva do progresso com destino ao sono perpétuo ou ao vazio; é o desejado fim de Hanio Yamada, mas também é o nosso modus vivendi.

O romance de Mishima situa-se no contexto da ocidentalização do Japão no pós-guerra, movimento que conduziu à ruptura com a tradição nipônica - a cultura dos samurais e os ideais confucionistas -, em benefício do american way of life. Diante do Japão que se veste de ocidente, que toma o trem da modernidade industrial rumo ao capital, abraçando um modo de vida pautado pelo consumo, abandonando a simplicidade e a modéstia da tradição, rendendo-se ao paladino da democracia liberal; Mishima destila o riso contra tal projeto de entendimento de mundo, contra o imperativo da vida a todo custo, ainda que tal vida fosse desprovida de dignidade. O romance foi publicado na Weekly Playboy japonesa, de forma seriada, entre maio e outubro de 1968. Com prosa agradável, Mishima desfia uma sucessão de episódios - todos histórias de baratas -, nos quais Hanio Yamada, nosso malogrado suicida, negocia sua vida.

“Vendo minha vida. Use-a como quiser. Homem de 27 anos. Garanto sigilo. Tranquilidade absoluta.” (p. 15), diz o anúncio publicado por Hanio num jornal de terceira categoria. A motivação da personagem advém da percepção de que vê “abrir-se diante de si um mundo maravilhosamente livre, mas um tanto vazio” (p. 15), uma vez que estivera disposto a morrer e falhara na tentativa de suicídio, a vida parece-lhe sem propósito. “O hoje deixara de existir para sempre, os dias jaziam todos perfeitamente mortos, alinhando seus ventres brancos feito sapos sem vida.” (p. 15). Frente à possibilidade de inscrever o romance na tradição do niilismo russo, seja de Pais e filhos, de Turguêniev, ou de Crime e castigo, de Dostoiévski, é importante considerar a peculiaridade que separa Bazárov e Raskólnikov de Hanio Yamada: o prazer com o qual vive e desfruta o tempo da vida. Se Yamada sente-se atraído pela possibilidade da morte, também é verdade que o personagem não se furta a viver os seus dias em busca do prazer e de pequenas satisfações cotidianas. Bazárov e Raskólnikov são lúgubres portadores do fim das estruturas tradicionais de sentido, mas falta-lhes a afirmação do nonsense.

Yamada não é o defensor de um novo sentido, mas adota a “percepção-barata” da vida. Sua tentativa de suicídio é uma saída diante da vida banal e barata - como é toda vida na era do capital -, uma tentativa de ruptura com um processo inexorável. A vida que se apresenta depois de tal constatação é vazia de um sentido que lhe subjaz, restando ser posta à venda como todo o resto. Yamada não deixa de ser uma metáfora do Japão ancestral, do qual Mishima testemunha a morte paulatina no pós-guerra: o personagem fracassa no suicídio e segue para uma vida esvaziada da qual, por um lado, deseja livrar-se por não possuir sentido algum e, por outro, apega-se por ser essa a única possibilidade que tem diante de si. Assim, entre o suposto heroísmo da afirmação de uma vida sem sentido e o marasmo de uma vida capitalizada - a vida de barata -, Mishima tematiza a vida a bordo do trem da modernidade.

Ao longo do romance, Hanio trava transações comerciais envolvendo a sua vida: nas primeiras ele espera a morte como resultado, mas, ironicamente, a morte foge do vendedor de vida; nas últimas o panorama inverte-se e o malogrado suicida passa a fugir da morte, redescobrindo um desejo pela vida, ainda que desprovida de qualquer sentido heroico ou absoluto. Por entre essas transações motivadas pelo anúncio, Mishima desenvolve uma reflexão sobre a solidão, companheira da jornada de todos; o erotismo e o prazer como formas pelas quais as coisas adquirem algum colorido; a ausência de sentido secretada no modo de viver da sociedade capitalista de consumo.

Após a primeira venda, Hanio prepara um jantar em seu apartamento, para si e para um rato de pelúcia. A cena, claramente um disparate, revela a condição inerente de quem percebe a vida como destituída de uma razão última e absoluta: a solidão. No entanto, Mishima não elabora o tema como uma pena capital à qual o nosso malogrado suicida estaria condenado, mas como a única alternativa a alguém que percebe a vida sem peso, destituída de moral e valor. No limite, todos os nossos jantares e chás da tarde, e todas as nossas companhias, refletem um pouco o rato de pelúcia de Yamada: a solidão como uma constante antropológica negada, inimiga e fonte de perigo. “Se alguém me visse, julgaria tudo isso uma brincadeira sem graça de um solitário tentando se livrar da solidão. Mas é muito perigoso ter a solidão como inimiga. Faço questão de tê-la como amiga - refletiu Hanio, ouvindo Debussy” (p. 52). A galhofa com o rato de pelúcia é a afirmação peremptória da solidão, única autêntica companheira daquele que compreende a vida barata que leva no interior do american way of life, no qual, expropriada de qualquer sentido, resta à vida ser capital que se gasta em transações-relações para afastar o tédio. Hanio janta com seu rato de pelúcia, e ouve a “Catedral submersa”, de Debussy, ressoando o vazio, a ausência, a solidão, a vida apenas.

São recorrentes as afirmações do narrador de Vida à venda acerca da avidez ou da avareza para com a vida. Ambas acabariam por constituir-se em certa negação afetada da vida, na medida em que, ou especulam sobre a vida algo que ela não é, ou projetam mediações que filtram a aventura humana do existir. “A avidez pela vida faz com que tudo pareça misterioso e complicado” (p. 158), como que envolvendo-a numa rede complexa na qual a vida reveste-se de sentido, de moralidade, de peso. O primeiro “cliente” de Hanio é um homem do “raciocínio complexo” (p. 157), um velho que deseja vingar-se da ex-esposa, uma jovem chamada Ruriko, de vinte e três anos, que o trocara por um homem mais rico, influente e poderoso. O ancião, ávido de viver, é incapaz de compreender como fora deixado de lado, à revelia da moralidade, da seriedade do mundo, como se a jovem lhe lançasse à cara o inevitável: a velhice e o termo da morte. “Se bem que”, diz Yamada em outro momento, “só alcançamos essa percepção quando estamos preparados para enfrentar a morte a qualquer momento” (p. 157-158).

Nesse caso, o trabalho de Hanio é simples: seduzir a jovem, deitar-se com ela, deixar que o atual marido descubra a traição e mate a ambos. O velho deseja a morte da jovem, “mas”, diz ele, “não quero que isso me pese na consciência, por mínimo que seja” (p. 19); Hanio encontra “prazer em morrer” (p. 18); Ruriko, nas palavras velho, “quer viver, custe o que custar”, algo que “está escrito em todas as partes do seu corpo, feito reza” (p. 18). O narrador descreve a jovem Ruriko revestida de um ar melancólico, mas que não vive sob outro código que não o seu próprio prazer. Ironicamente, Hanio apresenta-se à jovem como um vendedor de seguro de vida, entra no apartamento, a seduz e ambos vão para a cama: ela é o prazer pulsante que deseja viver ao limite; ele é o desejo de morrer, de modo poético e quase pictórico, atravessado por uma bala enquanto rompe os limites do prazer.

De fato, o casal é surpreendido pelo marido traído, mas, em vez de alvejá-los, o homem põe-se a desenhar a ambos, que se movimentam como numa “dança jovial e animada” (p. 36). O erotismo de Mishima é sinestésico, está na fibra de seu texto, e desenvolve a dualidade morte-vida de maneira afirmativa, como parte de um imaginário no qual ambas não se opõem. O prazer é elemento constitutivo da vida, pelo qual a morte apareceria como o termo do desfrute completo e derradeiro das possibilidades de viver; a morte esperada é o prêmio e não o castigo. O desejo de Hanio por uma morte pictórica realiza-se no desenho que capta a subversiva vida afirmada nos corpos dos amantes. O prazer - o erotismo, de modo geral -, dá algum colorido à vida de barata.

A morte foge do vendedor de vida, fazendo com que as relações travadas pelo personagem se revistam de uma ideia de entretenimento, de fuga do tédio da vida de barata. De algum modo, Hanio afigura-se como um herói decadente ou como um anti-herói, uma vez que aborta a ideia da vida rotineira, trivial e sem sentido, decidindo-se por demitir-se do trabalho, não buscar riqueza nem reputação e, por fim, morrer. A segunda parte do livro apresenta uma queda desse ideário de vida-morte, pois a personagem sucumbe à vida de barata e reencontra uma das constantes antropológicas mais básicas: o medo e o esforço que a vida exige. A heroica afirmação do nonsense custa caro.

Quem sabe o mundo tivesse a forma de uma curva francesa. Dizer que o mundo é uma esfera talvez fosse uma mentira. Acontecia que, de repente, um dos lados se retorcia estranhamente curvado para dentro, ou então, o lado reto terminava de forma abrupta em um abismo profundo. Não custava dizer que a vida era destituída de sentido, mas para viver a falta de sentido era necessária uma vigorosa energia, como constatava novamente. (p. 167-168)

Mishima elabora o labor e fado decorrentes de um modo de vida que, além de não possuir sentido algum, expropria tudo de qualquer possibilidade de sentido. Adquirir a percepção da vida de barata é, talvez, a parte mais fácil do processo, outro bem mais difícil é manter-se vivendo depois disso. Nesse sentido, interessante pensar na lógica do suicídio a partir do seppuku, o tradicional suicídio ritual dos samurais - realizado pelo próprio Mishima, em 1970, quando tentou incitar um golpe de Estado para colocar novamente o imperador à frente do Japão -, pois é a última tentativa de resguardar a vida que vale a pena ser vivida, a salvaguarda de uma vida com sentido, honrada e digna.

Quando Mishima começa seu texto apresentando o suicídio malogrado de Yamada declara exatamente a falência de todas as possibilidades de uma vida digna no interior daquilo que se coloca como proposta de vida no Japão do pós-guerra. Por isso, o suicídio é “fastidioso como levantar-se para apanhar um cigarro ali diante do nariz, quando se está entregue à doce preguiça”, ao tempo livre e sem sentido porque improdutivo no mundo do capital. “Vontade de fumar é o que não falta mas erguer-se para buscar o cigarro, sabidamente fora do alcance da mão, afigura-se tão maçante quanto atender alguém que pede ajuda para empurrar um carro enguiçado” (p. 162). A vida, tal como se propõe na estrutura do capital, não vale o esforço, mas morrer também não vale.

A ausência de razão não é confortável, mas assemelha-se a “dar-se conta de uma hora para outra que o caminho por onde se andava despreocupado e em segurança era, na verdade, o peitoril de um terraço situado no alto de um prédio de trinta e seis andares” (p. 183). A vida na modernidade, a cidade moderna, consiste nessa ilusão de segurança gerada pelo capital, pelas instituições, mas que é atravessada pelo risco, pela morte, pela falta de sentido. Mishima faz uso de outra analogia singular: “da mesma forma como brincar com um gato e descobrir de repente, na escuridão da boca cheirando a peixe e aberta num miado, as negras ruínas de uma cidade que, dir-se-ia, foi destruída por um grande bombardeio” (p. 183). O que chama-se de vida, na realidade, são os escombros das possibilidades de vida num mundo que não existe mais.

Se Mishima elabora tal discussão ao olhar para o Japão moderno, “civilizado”, não deixa de lançar uma grave questão à sociedade de consumo, a nossa sociedade: “E que necessidade havia de explorar ou viver a falta de razão, se claramente bastava abrir o armário para encontrá-la ali, santificada em meio a uma pilha de porcarias?” (p. 184). Pode-se dizer que o texto de Mishima destila um odor conservador e que secreta um desdém pelos signos da modernidade ocidental, no entanto, também é verdade que a insignificância da vida, a ausência de sentido, a proposição de uma vida asséptica, indolor, anestesiada, são fenômenos da modernidade na qual o ser humano assemelha-se à goma de mascar que, perdendo o sabor, termina cuspida à margem do caminho.